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Car Culture

O Agente, capítulo 1: Combustão noturna

Era a primeira noite de trabalho depois das férias. A primeira do ano – enfim, 2112 havia começado.

Não fazia três minutos que o veículo de patrulha estacionara na locação designada quando o alerta apareceu na HUD de seu visor: um rachador se aproximava. Não que fosse necessário: a luz quente dos faróis halógenos anunciava sua presença de longe.

A viatura já havia se adiantado. O ligeiro aumento nos batimentos cardíacos do Agente era um claro sinal de que uma perseguição iria acontecer. O sistema imediatamente calibrou os pneus, enrijeceu a suspensão e acionou o motor, produzindo um zunido leve. Um som que ele escolheu a dedo na primeira vez em que sentou-se no seu veículo, 16 anos atrás, e nunca mais trocou.

Por alguma razão ele sabia que os 360 kW de sua viatura equivaliam a quase “500 cavalos-vapor”. Ele só havia visto um cavalo uma vez na vida, na área verde protegida da cidade onde havia crescido. Não havia muita coisa lá – apenas um punhado de animais holográficos, um lago artificial e algumas dezenas de árvores. O guia disse que, no passado, os cavalos puxavam caixotes de madeira com rodas para levar as pessoas de um lugar para o outro. Depois, inventaram os carros – que, por força do hábito, continuaram usando “cavalos” para medir sua força. Quando os carros passaram a usar motores elétricos, no início alguns ainda diziam que eles tinham “cavalos”, mas para tentar cortar qualquer associação com os carros de antigamente, o uso dos kW tornou-se obrigatório por fabricantes, revistas e até mesmo pelas pessoas no dia-a-dia. E quando todas as fabricantes de carros viraram uma só as coisas ficaram ainda mais fáceis de padronizar.

Falando em carros, a verdade é que eles eram relativamente parecidos com o que se via 100 anos antes. Eles ainda tinham rodas e pneus de borracha. Ainda andavam no chão – embora os mais caros pudessem flutuar por algumas horas, pouco mais de um metro acima do chão, para garantir a viagem mais confortável possível a seus abastados passageiros. E eles ainda precisavam ter ao menos uma pessoa dentro deles para assumir o controle caso algo desse errado.

Essa pessoa era chamada “motorista”, embora estivesse mais para um último recurso caso todos os sistemas automatizados falhassem. E havia muitos – todos eles virtualmente à prova de falhas. Em mais de dez anos como patrulheiro, ele jamais havia precisado tomar o controle de sua viatura.

Ninguém em sã consciência acionava o modo manual de seu veículo por vontade própria. Antes de comprar um veículo, todos precisavam passar por um treinamento de direção e assinar um termo de responsabilidade isentando a Fabricante e o Governo de qualquer responsabilidade por “eventos indesejáveis e potencialmente catastróficos ocasionados pelo veículo em modo manual”.

A exceção eram os Agentes Rodoviários de Interceptação e Captura. Não havia qualquer tipo de inteligência artificial que fosse capaz de acompanhar o ritmo de um rachador em um carro antigo preparado. Eles eram suicidas.

A abordagem padrão terminava na delegacia, onde o contraventor recebia uma multa de 9.000 créditos e era liberado. Também recebia em seu cartão de identificação pessoal um código que o impedia de operar qualquer veículo por 30 dias. Paga a multa e cumprida a pena, tudo voltava ao normal. E a maior parte deles voltava a acelerar.

Não era um trabalho perigoso. Esses caras não andavam armados, não corriam na cidade e não se envolviam em acidentes. A rodovia era deserta, larga e era quase toda pavimentada. Ele sabia, lá no fundo, que se decidisse não ir trabalhar naquele dia, provavelmente não haveria consequência alguma. O rachador chegaria ao fim da rodovia e não teria alternativa senão dar meia volta e fazer o caminho oposto e voltar para casa – isto se tivesse combustível para chegar até lá.

De vez em quando ele se perguntava se tudo aquilo era mesmo necessário. Não havia tantos rachadores assim – pouquíssimas pessoas tinham dinheiro para comprar um carro, e menos gente ainda sabia onde conseguir um. E, se você tivesse os dois, precisaria ainda de um canal para obter combustível – a parte mais difícil do processo todo. E um negócio bem lucrativo, mesmo com o público seleto: com a grana de dois barris de combustível um dealer podia passar mais de seis meses só curtindo a vida, e muito bem.

Na prática estes caras não estavam colocando pessoas em perigo. Não havia pessoas, animais ou mesmo vegetação na beira da estrada – só uma linha de energia com postes de madeira e alguma estações de recarga.

No comando de seus carros, os rachadores faziam o possível para não serem, bem, interceptados e capturados. Quando o eram – o que podia levar dez minutos, duas horas ou uma madrugada inteira se tivessem bastante combustível – eles não ofereciam resistência. Nem precisavam ser imobilizados. Alguns pareciam até felizes. Uma vez um deles chegou a agradecer pela “sessão” e soltou uma boa gargalhada.

Os tais “rachadores”, que preferiam referir a si mesmos como “entusiastas do esporte a motor”, tinham aversão à ideia de deixar seus veículos – ou carros, como preferiam falar – levá-los para onde deveriam (ou queriam) ir.

Eram sujeitos curiosos. Claramente tinham os meios para manter um hobby tão caro, mas pareciam sempre cansados, andavam mal vestidos e tinham as mãos sujas de graxa. Ao mesmo tempo eram joviais e bem humorados, como se nada os pudesse entristecer naquele momento.

Todos eles eram habitués no expediente do nosso Agente, mas de tempos em tempos aparecia alguém novo. E sempre – sempre – com um carro diferente. Eram máquinas interessantes, isto ele havia de admitir. Todos os elementos estavam ali – quatro rodas, duas fileiras de bancos, faróis, lanternas, bem como um compartimento para o motor e outro para a carga. Mas eles eram mais simples, elegantes e esbeltos. Cada um tinha seu desenho, sua identidade.

O que mais lhe intrigava, porém, era o barulho que aquelas máquinas faziam. Em vez de um som uniforme, digitalizado e personalizado a seu gosto como nos carros modernos, o próprio motor fazia o barulho. Alguns soavam como o rugido de um animal selvagem. Outros produziam um uivo agudo e estridente sempre que aceleravam, interrompido apenas pelos estalos dos canos de descarga – seu aspecto mais condenável. Obsceno, até. E completamente hipnotizante.

Fazia quanto tempo que a viatura estava perseguindo aquele cara? Quarenta minutos, uma hora, talvez? O Agente percebeu que, enfim, estava lado a lado com seu alvo. Abriu a janela, e notou que aquele cara era novo. Devia ter seus 40 anos, barba por fazer, óculos escuros, um cigarro (apagado) na boca e dirigia um carro vermelho com duas portas e um ronco borbulhante, grave e ensurdecedor – bem acima do limite de velocidade.

Assim que percebeu a companhia, o rachador estendeu uma mão esquerda enluvada com o dedo médio em riste – que repousou a poucos centímetros do rosto incrédulo do Agente.

“Eu tava te esperando!” gritou, visivelmente tentando se fazer ouvir em meio ao rugido do motor. “Me falaram que tu é bom, parceiro!”

No mesmo instante o ronco ficou ainda mais alto e o carro vermelho começou a tomar distância.

“É agora!”

A viatura já sabia o que fazer. “Ativando modo manual em cinco segundos. Quatro segundos…”

Mãos firmes no volante. Pés posicionados no acelerador e no freio.

Três segundos. Dois segundos. Um segundo.

O volante de repente fica pesado. Uma cutucada no acelerador e o veículo responde imediatamente, sem qualquer tipo de filtro. Uma luz vermelha pisca o tempo todo no visor para lembrar o Agente de que, se algo acontecer, ele está por conta própria. Vivo ou morto.

Mas é justamente para estes momentos que ele vive. Às vezes se passam semanas a fio sem um corredor sequer. O tédio é esmagador. Mas quando um maluco desses aparece, tudo vale a pena. A descarga de adrenalina é inebriante.

O som do meliante começa a se fazer audível. Um ponto vermelho aparece adiante e vai crescendo até se tornar um borrão. De borrão, passa a uma traseira esculpida em metal, reluzindo em vermelho, a poucos centímetros do asfalto áspero. Os pneus são largos e, prestando atenção, é possível ver o composto abraçando cada pequena saliência do piso.

Seu carro podia não ter um motor a combustão, mas dava para o gasto. O som não lembrava em nada a música mecânica do rival, mas acompanhava perfeitamente os movimentos do carro – cada esticada, cada freada, cada mudança de faixa. Coisas que só ele, seus colegas e os criminosos que ele persegue podem conceber. A maior parte das pessoas prefere ser conduzida, e não conduzir.

Não demora muito mais tempo até que o carro seja alcançado. Novamente o Agente segue o acompanhando, lado a lado.

O contato visual dura poucos instantes. O Agente se afasta poucos metros para trás e vai acompanhando o carro vermelho de perto, saboreando cada instante daquele som fantástico. “Deve ser um Porsche”, dizia, lembrando de uma das dezenas de marcas do passado, que ele só conhecia através das revistas que guardava como relíquias em um quarto escondido de sua casa. “Seis cilindros opostos. A ar. Não dá para confundir!”

Aqueles caras eram maus, e deviam ser combatidos – era o que ele havia aprendido na Academia. Mas… por quê? Qual era sua grande missão? Os rachadores eram poucos e nunca haviam ferido ninguém. O mundo havia se livrado dos carros – nas cidades, apenas veículos autônomos, elétricos e silenciosos circulavam. Pessoais ou coletivos, eram todos limpos, eficientes, econômicos. Todos iguais.

O procedimento padrão seria realizar a manobra PIT e tirar o meliante de ação. Mas o nosso Agente não era muito fã do procedimento padrão.

O Porsche – possivelmente um dos últimos com motor a combustão – devia ter uns 150 anos. E estava impecável. Mas não andava tanto quanto a viatura – era muito mais primitivo e simples, quase uma peça de museu. Mas o ronco que aquilo produzia era delicioso.

Dava para perceber que o carro estava no limite. Não foi difícil ultrapassá-lo, dar um cavalo-de-pau e parar na frente dele. O instinto de preservação do rachador entrou em cena, e o esportivo alemão parou a centímetros do veículo da Lei.

“Porsche, não é?”

Entusiasmado, o homem respondeu: “911 Turbo 1976. Deve ser o único que sobrou!” Era visível que ele havia encontrado o que procurava. A satisfação estava estampada em seu semblante.

Os dois não falam mais nada. Depois de alguns instantes admirando o carro, o Agente foi até o porta-malas de sua viatura. Voltou com um galão de gasolina. Dez litros. Sabe como é… para emergências.

Com um comando de voz, a viatura autônoma começou a fazer o caminho de volta para a locação designada. O Agente tinha outro assunto para tratar, e ainda tinha algumas horas até o raiar do dia.

“Vamos embora. O galão é seu. Mas eu dirijo!”

Mais um nome para riscar da lista.