Os anos 1990 foram o início de uma nova era para a Mercedes-Benz. Ela já havia expandido sua linha para produzir um quinto modelo — um modelo de entrada, é importante mencionar, capaz de brigar com os Audi 80 e BMW Série 3. Já começava a investir no segmento dos esportivos com sua parceira de longa data, a AMG, e já havia racionalizado sua linha com um novo sistema de classes semelhante às Séries da BMW. Mas a marca ainda estava em uma posição desfavorável, sem muita competitividade no mercado internacional.
Eram os novos tempos globalizados, com marcas atuando em todo o planeta, e a Mercedes ainda produzia todos os seus carros em fábricas na Alemanha ou em linhas de montagem terceirizadas na Áustria e África do Sul. Para enfrentar os novos tempos, eles precisariam deixar seu famoso conservadorismo e arriscar novas estratégias.
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A primeira dela foi a construção de uma fábrica em Tuscaloosa, no estado americano do Alabama. Ali seria fabricado um novo produto feito sob medida para o mercado americano, a Classe ML, o primeiro SUV de luxo da Mercedes-Benz, lançado em 1996.
No ano anterior a Mercedes também havia lançado um novo roadster, inspirada pelo sucesso do Miata e pelos planos de sua arquirrival BMW, que fizera o Z1 e lançava o Z3. Dois anos mais tarde, em 1997, a Mercedes entrou de cabeça em um novo segmento de entrada com o Classe A. Foi o primeiro Mercedes de tração dianteira, o primeiro Mercedes com motor transversal e o primeiro Mercedes hatchback da história.
No ano seguinte, mais uma novidade: a AMG deixou de ser parceira técnica e se tornou propriedade da Daimler-Benz, passando a ser sua divisão esportiva. Ainda naquele 1998, viria uma manobra que daria à Mercedes uma imensa fatia do mercado norte-americano: a compra da Chrysler.
Na época a Chrysler estava com uma linha envelhecida e a fusão com a Mercedes seria uma forma de renovar motores e plataformas com baixo custo de desenvolvimento, uma vez que eles poderiam usar componentes já desenvolvidos pela Mercedes. A Daimler, por sua vez, estava interessada na lucratividade dos modelos Jeep e no segmento de veículos comerciais dos EUA. A DaimlerChrysler era o casamento perfeito.
Entre modelos Jeep renovados, um novo V6 para a Mercedes e um câmbio Mercedes que os americanos adoraram, a parceria deu à Chrysler um elemento fundamental que a fez prosperar nos primeiros anos da parceria e mantém seu apelo até hoje: a plataforma LX.
Embora tenha sido projetada nos EUA, o projeto começou na Alemanha, quando um grupo de engenheiros da Chrysler foi enviado a Stuttgart para acompanhar o desenvolvimento do novo Mercedes W211, o Classe E produzido entre 2003 e 2009 e avaliar o que poderia ser usado para a nova plataforma.
O resultado foi uma evolução da plataforma LH modificada para ter mais rigidez à torção e menos peso — 37% dela usa ligas de alta resistência — e para acomodar a suspensão traseira “five-link” e o diferencial do Classe E W211, e a suspensão dianteira de braços sobrepostos do Mercedes Classe S W220. Além disso, a transmissão automática 722.5 da Mercedes (W5A580, para até 580 Nm de torque) também seria usada com os motores da Chrysler.
O uso extensivo de componentes Mercedes — uma lista que incluiu também o sistema de ar-condicionado da Behr, coluna de direção, módulos eletrônicos do controle de tração e estabilidade e estrutura dos bancos — fez com que muita gente acreditasse (e propagasse) que ela era uma variação da W211 ou mesmo da antecessora, a W210 usada na Classe E de 1995 a 2002 por ter sido a origem do arranjo de suspensão da W220. Mas esta é uma plataforma genuinamente americana, como fica evidente pelos modelos originados por ela.
Chrysler 300C e 300C Touring, Dodge Charger, Dodge Magnum e Dodge Challenger — todos usam como base a plataforma LX e todos foram muito bem sucedidos nos primeiros anos da joint venture. Eram carros espaçosos (com entre-eixos de três metros), tinham suspensão refinada e uma rodagem sólida, além de desempenhar muito bem nos testes de impacto dos EUA.
Depois do sucesso inicial, a Chrysler passou por maus bocados no final da década de 2000 porque seus carros da plataforma LX eram muito dependentes do V8 e o preço dos combustíveis e o início da histeria carbônica daquela virada de década prejudicaram as vendas — o prejuízo, aliás, levou a Mercedes a vender a Chrysler por quase um quarto do valor pago em 1998, e resultou no pedido de proteção contra a falência que culminou na venda para a Fiat e a subsequente formação da FCA.
Passada a crise, contudo, a nova gestão da FCA manteve os modelos da plataforma LX. Com exceção do Magnum, todos também são oferecidos até hoje, embora a Chrysler tenha mudado o nome da plataforma com as atualizações feitas para acomodar novos componentes como a atual transmissão de oito marchas e um novo sistema elétrico, mas a base de tudo ainda é a mesma que eles desenvolveram com a Mercedes há mais 15 anos.
Embora a plataforma esteja sentindo o peso da idade (literalmente), talvez o Dodge Challenger não tivesse se tornado um dos carros mais importantes produzidos atualmente, nem chegado às versões Hellcat, Demon e Redeye, que foram soluções da Dodge para manter seu muscle car apelativo ao público sem ter uma plataforma leve com a usada atualmente pela Ford com o Mustang e pela Chevrolet no Camaro. Como é pesado demais, o jeito foi dar mais potência e fazê-lo assumir o papel do muscle car à moda antiga que o torna tão fascinante atualmente.
Por que o Dodge Challenger (ainda) é um dos carros mais importantes em produção atualmente?
E embora possa parecer que a Chrysler só fez uma plataforma tão boa por causa da ajuda da Mercedes, saiba que os alemães também foram beneficiados pela Chrysler.
No início da parceria a Mercedes ainda usava um motor V6 com ângulo de 90 graus entre as bancadas, o que exigia um eixo de balanceamento devido ao intervalo entre os tempos de combustão.
Com o motor Pentastar da Chrysler em desenvolvimento na época, a Mercedes usou o projeto básico do bloco para desenvolver seu novo M276, um V6 de 60 graus usado até hoje na maioria de seus modelos. Curiosamente, este mesmo motor tem um primo distante na Maserati, que também usou o Pentastar — praticamente completo — para desenvolver o motor F160 do Ghibli, Quattroporte e Levante.
Por último, há uma suposta influência da Chrysler no desenvolvimento do SLS AMG. Segundo a teoria, o SLS AMG foi desenvolvido a partir de um projeto DaimlerChrysler para uma nova geração do Dodge Viper, que acabou engavetado após a venda e a quase-falência da Chrysler.
A versão nunca foi confirmada — há quem diga que foi a HWA que desenvolveu o SLS AMG, mas a empresa de Hans Werner Aufrecht foi responsável pelas versões GT3 e GT4. Verdade ou não, é impossível não viajar longe quando se pensa o que teria acontecido ao Viper e à AMG se o casamento tivesse sido mesmo perfeito.