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Car Culture

O Mustang GTD poderia ter sido mais rápido? O que seu recorde significa, afinal?

Em 2008, há exatos 16 anos, uma ação conjunta da Chrysler e da revista americana Motortrend, levou o recém-lançado Dodge Viper ACR ao circuito de Nürburgring com uma missão: obter o recorde no desafiador Nordschleife. Na época, esse tipo de recorde ainda era pouco falado. A internet social ainda estava perdendo os dentes de leite e Nürburgring era mais conhecido pelos gamers e pelos entusiastas que tinham acesso ao lendário “Faszination on the Nürburgring” ou às edições da revista alemã Sport Auto, que fazia seu Supertest no circuito.

Antes disso, somente a Nissan havia explorado os tempos de volta como recurso de marketing. Desde 1989, quando ela relançou o Skyline GT-R, cada nova geração superava os tempos estabelecidos no circuito, fazendo dele o primeiro “rei de Nürburgring”. A campanha da Nissan, contudo, era limitada em termos de alcance: o Skyline GT-R sempre foi um modelo voltado ao mercado interno, que só escapou para Reino Unido e Austrália por meio das importações independentes. Como tinha direção na direita, não podia ser emplacado em boa parte do planeta.

Foi a própria Nissan que fez o recorde se tornar relevante para o resto do mundo. Em 2009, com a nova geração do GT-R, agora um modelo próprio, separado do Skyline, eles foram ao circuito e estabeleceram mais um recorde. Só que agora, o GT-R não era mais um carro exclusivo do mercado japonês, mas um produto global que seria vendido em todos os mercados onde a Nissan atuava — até mesmo no Brasil.

A meta era uma volta abaixo dos 7:30, algo que ninguém havia feito até então. E como fizera nas gerações anteriores, a Nissan obteve a marca desejada: em 17 de abril de 2008, o GT-R completou a volta em 7:29,03, mantendo-se o recordista da pista.

O Nissan GT-R será um clássico no futuro?

Mas agora, como já disse mais acima, o Nissan GT-R era um carro global, um concorrente direto dos esportivos ocidentais e até mesmo de alguns supercarros muito mais caros que eles. Foi esta, aliás, uma de suas revoluções: desempenho de supercarro a preço de esportivo. De repente, o recorde em Nürburgring se tornou uma poderosa ação de marketing não mais para a Nissan apenas, mas para qualquer fabricante que desejasse convencer o mercado que seu carro era realmente veloz.

As duas revoluções do Nissan GT-R

Não é para menos: a Nissan escolheu Nürburgring justamente por sua inigualável compilação de curvas, variações de superfície e relevo condensados em pouco mais de 20.000 metros. Nenhum outro lugar do mundo era tão desafiador — tanto que Jackie Stewart o apelidou de “Inferno Verde”, uma vez que o circuito é cercado pela vegetação das montanhas Eifel. Quem fosse mais rápido ali, seria mais rápido em qualquer circuito.

Foi por isso que, sete semanas depois, a General Motors enviou o Corvette ZR1 ao circuito para tentar (e conseguir) superar a marca do GT-R. Mesmo sem as vantagens do sistema de tração integral ATTESA, o Corvette completou a volta em 7:26,04, tomando a coroa do GT-R. O reinado, contudo, não durou muito: em agosto de 2008 os ingleses da Evo Magazine fizeram um supercomparativo com o Maserati MC12, o Porsche Carrera GT, a Ferrari Enzo, o Koenigsegg CCX e o Pagani Zonda F Clubsport. Todos, exceto o Koenigsegg superaram os 7:30. Maserati, Pagani e Ferrari, superaram o Corvette, sendo o MC12 o mais rápido deles, com 7:24,29.

Não deu nem tempo de comemorar: naquele mesmo mês, a Chrysler e a revista americana Motor Trend levaram o recém-lançado Dodge Viper ACR à Alemanha e estabeleceram um novo recorde: 7:22,1. A coroa voltava aos americanos. Com a disputa aquecida, os anos seguintes viram uma troca de recordistas e uma escalada de tempos sem precedentes em Nürburgring.

Veja: o primeiro carro a quebrar a barreira dos oito minutos foi próprio Nissan Skyline GT-R R33, em 1996. Foi um recorde controverso, pois o carro usou gaiola de proteção e foi conduzido pela própria Nissan. Mas foi a primeira vez que um carro completou a volta em 7:59,887, superando a marca de 8:01 estabelecida pelo Bugatti EB110 em 1993. Ou seja: a evolução dos tempos dos 8 minutos para os 7:30 levou 12 anos. Com a escalada da década de 2010, contudo, foi preciso esperar apenas metade do tempo para ver uma nova revolução nos tempos de volta: em 2013 a Porsche quebrou a barreira dos 7 minutos com o 918 Spyder, que completou a volta em 6:57. Depois disso, o atual patamar de 6:30 levou 11 anos para ser atingido — foi somente neste ano que o Mercedes-AMG One, o atual recordista, fez a volta em 6:29,090 — o que mostra quão rápida foi a evolução dos tempos de volta em Nürburgring ao longo da década passada.

Não espere, contudo, uma nova revolução nos tempos de volta. O Mercedes-AMG One deverá ficar algum tempo no topo até que um hipercarro derivado da Fórmula 1 supere seu tempo. Os candidatos mais prováveis seriam o Aston Martin Valkyrie, o Red Bull RB17, o GMA T.50 e, quem sabe, algum Koenigsegg, mas não acho que algum destes irá acelerar em Nürburgring com este objetivo. Também não espere ver a Ferrari F80 por lá, pois a Ferrari tradicionalmente mede seus carros apenas no circuito de Fiorano, comparando-os entre si. Quem pode surpreender é o Corvette Zora, que já está em desenvolvimento e terá 1.200 cv produzidos por um powertrain híbrido como o do AMG One. O Vette já foi flagrado em Nürburgring e, no passado, participou da disputa pelo recorde do circuito.

Enquanto isso, o que devemos ver nos próximos anos é um maior número de esportivos na casa dos seis minutos altos. Antes ocupada apenas pelos modelos GT da Porsche e pelas versões extremas dos Lamborghini, a bolha foi furada em 2020 pela Mercedes-AMG com seu GT Black Series — ainda hoje o carro de motor dianteiro e tração traseira mais rápido no circuito — e agora por ninguém menos que o Mustang GTD, o primeiro carro americano a adentrar os seis minutos, conseguindo o que o Viper tentou e, por muito pouco, não conseguiu em 2017.

Com um tempo de 6:57,685, o Mustang GTD praticamente empata com o Porsche 918 Spyder e o Porsche 718 GT4 RS Manthey Racing. Ele poderia também ser considerado o muscle car mais rápido em Nürburgring, mas, sinceramente, pouco sobrou de muscle nesta versão GTD. Pense que o Mustang GTD está para o Mustang GT como o 911 GT3 RS está para o 911 Carrera. O mesmo nome, a mesma plataforma, mas completamente diferentes.

O Mustang GT3 de Le Mans

O GTD, aliás, é realmente uma versão de rua do Mustang GT3 de pista. As duas versões foram desenvolvidas juntas e cada aspecto aerodinâmico do GT3 foi adaptado para que o GTD pudesse ser usado nas ruas. Segundo o diretor do Mustang na Ford, Greg Goodall, que trabalhou em todos os Mustang desde a quarta geração, o GTD “pega tudo o que há de melhor das pistas e homologa para as ruas’. “Usamos amortecedores com válvulas de ajuste para ajudar o carro a se manter pregado na pista, mas a suspensão tem duplo ajuste de altura e de constante de mola para ser usado com conforto nas ruas”, disse Goodall ao site Top Gear.

Além dos componentes aerodinâmicos do Mustang GT3, o Mustang GTD ainda tem freios de carbono-cerâmica, e um novo supercharger de maior capacidade volumétrica em seu V8. Com isso, ele chega aos 826 cv e atinge a máxima de 325 km/h. Goodall também disse que o objetivo da equipe era, desde o início, completar uma volta abaixo dos sete minutos em Nürburgring.

O tempo veio logo na primeira volta dos testes, que foram executados pelo piloto alemão Dirk Müller, vencedor das 24 Horas de Nürburgring e da GTE Pro nas 24 Horas de Le Mans de 2016 com o Ford GT. Com o tempo homologado pelo registro oficial de Nürburgring, os 6:57,685 do Mustang GTD o colocam entre o Porsche 911 GT3 992.1 (6:59,93) e o 91 GT3 com o kit Manthey Performance (6:55,737). Extra oficialmente, ele empata, na prática, com o Porsche 918 Spyder (6:57) e com a Ferrari 296GTB testada pela revista Sport Auto (6:58,70). Além de ser o americano mais rápido em Nürburgring, o Mustang GTD também é o segundo entre os carros de motor dianteiro.

Agora… para encerrar, me permitam uma pequena reflexão: o Mustang GTD se tornou o primeiro carro americano a cruzar a chegar aos seis minutos em Nürburgring em 2024. Isso, usando todos os recursos que a Ford Racing têm disponíveis, uma vez que o carro foi desenvolvido juntamente do GT3. Além disso, o carro desfruta de um extenso know-how obtido pela Ford em seu programa de endurance com o GT e nesta temporada do GT3.

Dito isso, considere o seguinte: o que seria do SRT Viper ACR se a FCA não o tivesse abandonado à própria sorte? Uma iniciativa independente, bancada por crowdfunding e capitaneada por um clube de proprietários do Viper, que contou com a doação dos carros por uma concessionária e com o apoio de duas oficinas envolvidas no desenvolvimento do Viper no passado.

O que o Dodge Viper ACR nos ensinou com seus 7 minutos em Nürburgring?

Com todas as dificuldades impostas pelo orçamento limitadíssimo, eles foram à Alemanha e conseguiram completar a volta em 7:01,3 — e estavam prestes a baixar o tempo quando um pneu estourado causou um acidente e encerrou o sonho de colocar o Viper abaixo dos seis minutos. Isso em 2017, com um V10 aspirado de 8,4 litros e 640 cv. O que teria sido dele se a FCA não tivesse virado as costas e dado ao Viper uma despedida digna de sua história — e do tamanho dos cofres da empresa?

O que me leva a outra reflexão: os 6:57 do Mustang GTD pressionam a Chevrolet a fazer um ZR 1 e um Zora muito mais rápidos. No mínimo 6:56 para o ZR1 e 6:40-6:30 para o Zora. Da mesma forma,  se o Viper tivesse obtido os almejados 6:59, será que a Ford se contentaria com 6:57? Um carro muito mais tecnológico e sete anos mais novo, apenas um segundo mais rápido? É uma questão que jamais poderemos responder, mas só reforça a importância da rivalidade nas pistas. Não existe “mais rápido” sem um rival para te acelerar.