O assunto das últimas semanas no meio automobilístico é um só: o recorde de velocidade do SSC Tuatara. No dia 10 de outubro de 2020, o piloto Oliver Webb levou o supercarro de 1.774 cv aos 509 km/h – média aferida com o carro acelerando nos dois sentidos de uma rodovia em Nevada, nos EUA. O feito foi divulgado pela SSC em 19 de outubro (há exatos dez dias), acompanhado de um vídeo onboard de 360° que mostra o Tuatara chegando aos 532,9 km/h (331 mph).
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Toda a imprensa automotiva noticiou o ocorrido com empolgação – o que inclui o FlatOut, obviamente. Afinal, por mais que fiquemos meio saturados com tantos superlativos, é sempre bacana ver a engenharia automotiva testando seus limites. Além disso, havia o fato de ser um salto considerável em relação aos recordes anteriores – quase 20 km/h, considerando que o Chiron Super Sport 300+ atingiu os 490 km/h em Ehra-Lessien.
Sendo assim, é natural que todos queiram provas incontestáveis quando alguma fabricante atinge uma marca tão importante – ou logo surgem os céticos, os que duvidam da veracidade da conquista. E foi exatamente o que houve com o recorde do SSC Tuatara logo depois que a notícia veio à tona e foi publicada por toda a imprensa.
Discussões em redes sociais, tópicos em fóruns e vídeos no YouTube analisavam o vídeo divulgado pela SSC, que foi publicado também no canal do Top Gear (acima) e apontavam inconsistências que, no mínimo, colocavam em dúvida a autenticidade das imagens – e, na pior das hipóteses, levantavam a possibilidade de que tudo não passasse de uma grande fraude. Este tipo de escrutínio é, repetimos, natural quando ocorre uma quebra de recorde tão significativa.
O início da controvérsia
Entre estes vídeos, um dos mais vistos e compartilhados foi publicado por Tim Burton – não o diretor de cinema, mas o youtuber Shmee150, cujo canal é quase exclusivamente dedicado a supercarros e hipercarros. Tim aponta no próprio vídeo diversos detalhes que não fazem sentido, e mostram que os números divulgados pela SSC e exibidos na tela não podem corresponder à realidade. Ele também utiliza o vídeo do antigo recorde de velocidade para carros produzidos em série – o Koenigsegg Agera RS, que em 2017 atingiu velocidade média de 447,2 km/h e pico de 457,4 km/h no mesmo trecho de rodovia.
Através dos canteiros centrais da rodovia – ao todo são três no trecho utilizado para a medição – Tim calculou a velocidade média do SSC Tuatara ao longo do trajeto. Para isto, ele utilizou o Google Maps para medir a distância entre o ponto de partida e entre cada um dos canteiros e a multiplicou pelo tempo necessário que o carro levou para atingir cada uma das marcas (a explicação começa por volta dos 5:50 no vídeo).
De acordo com os cálculos de Tim, a título de informação:
Da largada ao canteiro:
Distância: 1,69 km
Tempo: 38,18s = velocidade média de 160,1 km/h
Do primeiro ao segundo canteiro:
Distância: 1,81 km
Tempo: 22,64s = velocidade média de 289,1 km/h
entrada a 308 km/h, saída a 494 km/h
Do segundo ao terceiro canteiro
Distância: 2,28 km
Tempo: 24,4s = velocidade média de 337,1 km/h
Entrada a 494 km/h, saída a 389,5 km/h
Usando o vídeo como referência, Tim observa o piloto Oliver Webb leva cerca de 22,64 segundos para ir do primeiro ao segundo canteiro, em um trajeto de 1,81 km – o que resulta em uma velocidade média de 289,1 km/h. No entanto, os dados que aparecem em tempo real no vídeo mostram um velocímetro marcando 308 km/h quando o carro passa pelo primeiro canteiro e 494 km/h quando passa pelo segundo canteiro – o que resultaria em uma velocidade média bem maior, de aproximadamente 402 km/h.
Entre o segundo e o terceiro canteiros, ocorre algo parecido: 24,4 segundos para percorrer a distância entre os dois pontos – 2,28 km, o que resulta em uma velocidade média de 337,1 km/h. Os números na tela, porém, mostram o carro a 494 km/h no segundo canteiro, depois no pico de 509 km/h, e por fim desacelerando até passar pelo terceiro canteiro a 389,5 km/h.
Resumindo: seria fisicamente impossível para o SSC Tuatara atingir a velocidade exibida na tela durante o vídeo – que, lembramos, mostra a aferição que supostamente atingiu a maior velocidade.
Tim ressalta que podem haver imprecisões em seu método – que, afinal, é bem simples e foi feito com base nas imagens fornecidas pela própria SSC no Youtube. Por esta razão, ele também levanta outra questão: as relações de marcha do carro. O próprio piloto Oliver Webb confirmou que, no momento em que o carro atinge os 509 km/h, o câmbio está na sexta marcha.
Ocorre que a Cima, fornecedora do câmbio, diz que as relações de marcha são as seguintes:
Repare na área demarcada: em sexta marcha, a velocidade final é de 473,66 km/h – bem superior aos 509 km/h registrados em vídeo.
Ainda com base no vídeo, Tim fez uma comparação a olho nu entre o vídeo divulgado pela Koenigsegg em 2017 e o vídeo da SSC – afinal, ambos foram filmados na mesma locação, com ângulos de câmera semelhantes. Outros youtubers já haviam feito a mesma coisa, invariavelmente chegando à mesma conclusão: o Koenigsegg parece levar menos tempo para percorrer a mesma distância – mesmo que tenha sido mais lento pelos números fornecidos pelas duas fabricantes.
As considerações de Tim foram ecoadas por outros youtubers, como Misha Charoudin e Robert Mitchell, e foram suficientes para colocar em dúvida toda a comunidade entusiasta. Mas este foi só o começo da controvérsia.
Verificado ou não?
No dia 26 de outubro – três dias atrás – a SSC divulgou em seu site um press release dizendo que a Dewetron, fornecedora dos equipamentos utilizados na aferição das velocidades por GPS, havia validado as marcas obtidas pelo SSC Tuatara. No comunicado, a SSC diz que as duas empresas trabalham juntas desde 2007, quando foram feitos os primeiros testes de velocidade com o SSC Ultimate Aero.
O texto também cita o CEO da Dewetron, Christoph Weidner – porém as citações não dizem respeito às aferições em si, e sim sobre os métodos utilizados pela empresa em seus equipamentos de aferição por GPS – que incluem captura de dados por 15 satélites diferentes simultaneamente. Aspectos técnicos das medições feitas em 10 de outubro não são abordados, e nem se fala sobre testemunhas oculares da Dewetron, nem nada do tipo.
Porém, em 28 de outubro – ontem – veio uma surpresa: um comunicado oficial da Dewetron esclarece que não houve qualquer tipo de validação por parte da empresa quanto ao recorde do SSC Tuatara. Assinado pelo próprio Christoph Weidner, o press release esclarece que os funcionários da SSC foram treinados remotamente sobre como operar os equipamentos, porém que todos os resultados são de inteira responsabilidade da fabricante do Tuatara.
A explicação da SSC
Com tudo isto a legitimidade do recorde foi obviamente colocada em xeque. Surgiram mais artigos e vídeos abordando o assunto – alguns defendendo a SSC, outros criticando pela suposta fraude. A revista Motor Trend é uma das que defendem Jerod e sua empresa, argumentando que o vídeo não serve como ferramenta de validação, e sim os dados de telemetria obtidos pelos equipamentos – mesmos argumentos que utilizam CarBuzz e Top Gear, por exemplo. O que levou a própria SSC a, enfim, pronunciar-se hoje (29).
Segundo Jerod Shelby, fundador e presidente da SSC, uma série de fatores é responsável pelas discrepâncias entre os números obtidos através da análise das imagens, e os dados de telemetria que aparecem na tela. Não vamos transcrever toda a nota aqui – mas seguem as partes mais relevantes.
Em outubro de 2019, no dia em que as notícias foram divulgadas, nós pensamos que dois vídeos haviam sido publicados: um do cockpit, com os dados de telemetria sobrepostos, e outro vídeo com as cenas de bastidores.
Por algum motivo houve uma confusão no lado da edição, e receio admitir que a equipe da SSC não fez a revisão do vídeo antes de o mesmo ser publicado. Também não tinhamos percebido que não um, mas dois vídeos onboard diferentes existiam e haviam sido compartilhados com o mundo todo.
À primeira vista, parece que os vídeos divulgados trazem diferenças no momento em que os editores incluíram o data logger (que mostra a velocidade) em relação à posição do carro na pista. Esta variação nos ‘pontos de sincronia’ são as responsáveis pela diferença nos registros da sessão.
Jerod diz que, de todo modo, ambos os vídeos traziam informações erradas. Ele acrescenta que a intenção nunca foi legitimizar o recorde utilizando os vídeos – que a Driven, empresa responsável pela produção, possui muito material das filmagens e já está trabalhando com a SSC para divulgar o vídeo correto “em sua forma mais simples” assim que possível.
Ou seja: em essência, a SSC diz que o vídeo usado como referência pelos youtubers e toda a comunidade para analisar o recorde do Tuatara é o vídeo errado – e que o vídeo o certo existe, mas ainda não foi visto por ninguém.
Quanto às relações do câmbio de sete marchas, Jerod diz que elas são diferentes daquelas disponíveis com a fornecedora Cima (as conversões em vermelho são nossas):
Ou seja: segundo a SSC, as relações de marcha do Tuatara permitem um limite de velocidade muito maior.
O comunicado da SSC não aborda possíveis diferenças entre as relações de marcha do carro usado nos testes e os veículos que serão vendidos ao público – não nega, nem confirma, deixando no ar. Contudo, Jerod aborda outros detalhes das aferições.
Segundo ele, o carro gera 349 kg de downforce a 500 km/h, ao mesmo tempo em que o coeficiente aerodinâmico nesta velocidade aumenta de 0,279 para 0,314. E admit que os pneus Michelin Pilot Sport Cup 2, de medidas 345/30/20 nas quatro rodas, foram calibrados com 49 psi – normalmente são 35 psi. Com isso, a circunferência calculada dos pneus foi de 2.264 mm, e não 2.248 mm como diz a ficha técnica do Tuatara. E isto pode causar variações.
O caso é que a SSC parece confiante em seus números, e Jerod diz que eles estão do seu lado. Em uma entrevista ao Top Gear publicada ontem (28), ele também afirmou que o recorde ainda não foi enviado para validação por parte da Guinness World Records – esclarecendo outro ponto que ainda não havia ficado totalmente transparente. Segundo ele, a SSC está aguardando “informações de terceiros” antes de enviar os dados.
Por fim, Jerod Shelby explica que o equipamento da Dewetron utilizado para as aferições, incluindo sensores de velocidade, será enviado em breve para análise e verificação de sua precisão – e é por isso que as informações de telemetria ainda não foram compartilhadas com o mundo. Justamente as informações que poriam uma pedra em qualquer dúvida. Jerod não desmente o fato de que o acompanhamento dos testes Dewetron foi feito remotamente, e nem isenta a SSC da responsabilidade sobre suas declarações.
E agora?
Por ora, ainda é difícil chegar a uma conclusão. Embora existam, de fato, inconsistências nas explicações da SSC, também existem alguns furos nos métodos utilizados pelo youtuber Shmee150 para calcular a velocidade do Tuatara. A ferramenta do Google Maps pode servir como referência aproximada, mas não leva em consideração, por exemplo, a topografia do terreno – além de não permitir medições muito precisas. Além disso, o erro de edição no vídeo é uma explicação plausível para as inconsistências apontadas pelos que duvidam do recorde.
Só mesmo as informações de telemetria dos equipamentos, quando forem reveladas, porão um fim às especulações.