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Mercado e Indústria Pensatas

Talvez o preço não seja o problema do carro popular…

Em março, quando o problema do carro popular se tornou uma discussão pública urgente, o governo federal se viu forçado a fazer algo para evitar um não-distante colapso da indústria automobilística. Durante a pandemia, por exemplo, a indústria fechou cerca de 8.500 vagas de trabalho. Em 2021 as fabricantes empregavam 101.050 pessoas, o pior número desde 2007, quando 100.674 pessoas trabalhavam nestas fábricas.

A crise não envolve apenas na indústria automobilística: entre 2011 e 2020, o Brasil viu nada menos que 9.579 fábricas fecharem, o que causou a redução de 1 milhão de vagas de trabalho nesse período. A indústria automobilística foi a mais afetada de todos os segmentos: em 2011 ela representava 12% da indústria nacional. Em 2020, 7,1%. Mais de 23.000 pessoas perderam suas vagas por este encolhimento.

As medidas para incentivar as vendas de carros populares vêm sendo discutidas desde então, e serão anunciadas nesta próxima quinta-feira (25), Dia da Indústria. Especula-se uma nova redução do IPI (imposto federal) e possivelmente do ICMS (imposto estadual), além de redução de margens das fabricantes para esse tipo de carro. Também fala-se em alguma forma de liberar o uso do FGTS para comprar carros populares zero-quilômetro.

Quanto custavam os carros populares de 1994 em valores atuais?

No início das discussões, falava-se em um preço-alvo na faixa dos R$ 50.000 para os populares, mas com o decorrer da conversa, ficou claro que este valor não será possível e agora já se fala em conseguir ao menos uma opção de R$ 55.000. Ajuda, claro. Se os carros que hoje custam R$ 65.000 chegarem aos R$ 55.000 será um grande avanço, mas ainda não resolve a questão da “popularidade”.

O conceito de “carro popular”, em sua essência, é um automóvel que possa ser comprado por um trabalhador comum, alguém que recebe mais ou menos a média salarial. Hoje, a renda média da população brasileira é R$ 2.715, enquanto a taxa média para financiamento de carros zero-quilômetro é de 1,2% ao mês. Nesse cenário, um carro de R$ 55.000 financiado em 60 vezes, sem entrada, como ocorreu no último boom dos carros novos, custaria ao trabalhador médio R$ 1.291,19 ao mês — quase metade do salário médio ao longo de cinco anos.

O problema é que um carro não fica muito mais barato do que estes R$ 55.000. Não no mundo de 2023. Hoje um dos carros mais baratos do mundo é o próprio Renault Kwid que temos como “popular” no Brasil. Na Índia, onde ele tem rodas menores, menos airbags, não tem isofix nem controle de estabilidade, e tem menos reforços estruturais, ele varia de US$ 5.600 a US$ 7.600 — o que corresponde a algo em torno de R$ 28.000 a R$ 38.000.

Nos EUA e Europa, que têm um padrão de carro popular mais parecido com o brasileiro, os carros mais baratos são o Mitsubishi Mirage (EUA), de US$ 17.750, e o Dacia Sandero (EU) de € 12.000 (US$ 12.900) — o Dacia Sandero que, aqui, é mais caro que o Kwid. Faça as contas: US$ 17.750 são R$ 87.800, enquanto € 12.000 são US$ 63.900. Na África do Sul a na Tailândia, o carro mais barato é o Suzuki Celerio, de 184.000 rands (África do Sul) e 328,000 baht (Tailândia), equivalentes a cerca de R$ 47.000.

Percebe o padrão? A média do preço dos carros de entrada nestes países é de R$ 66.000. Mesmo se tirarmos os EUA da jogada, a média fica em R$ 55.000. É isso o que custa um carro hoje no mundo. Se a gente não consegue comprar, o problema talvez não seja do carro, mas da economia brasileira.

 

O custo Brasil

Fazer um carro, afinal, demanda insumos que são cotados no mercado internacional, as tais commodities. Não dá pra fugir dos preços em dólar quando se trabalha com aço, vidro, borracha, alumínio, magnésio e derivados de petróleo. Na prática, não se faz um carro capaz de atender às normas de segurança e emissões presentes por muito menos do que já se faz.

Ainda que os salários brasileiros sejam mais baixos, o Brasil (e a América do Sul em geral) tem um dos maiores custos de contratação do mundo. O custo de se contratar alguém no Brasil é 15 vezes maior que na África do Sul, cinco vezes maior que no Canadá, duas vezes maior que nos EUA, Índia e Austrália e 45% maior que na Alemanha. 

Depois, outro ponto crítico na produção de automóveis no Brasil é o custo da energia elétrica industrial — talvez um dos recursos mais caros para a indústria, visto que carros são feitos com soldas elétricas. Até bem pouco tempo atrás, a redução de pontos de solda era uma medida para reduzir custos. No Brasil, o Megawatt-hora da energia elétrica industrial custa US$ 113. Nos EUA o MWh custa US$ 69, no México sai a US$ 90, na Coréia do Sul a US$ 100. Na Alemanha custa US$ 143 e no Japão, US$ 150.

Em uma entrevista ao portal IG em 2013, o engenheiro mecânico e professor da Universidade de São Paulo, Marcílio Alves, disse que “o custo da eletricidade usada para fazer um carro corresponde a 20% do custo da estrutura” e que, por isso, economizar eletricidade é uma forma de redução de custos. Como se reduz custos nesse sentido? Reduzindo o número de pontos de solda ou usando menos energia para cada ponto — o que reduz a eficácia do ponto.

É por isso, entre outros fatores, que o Renault Kwid brasileiro é mais caro que o Renault Kwid indiano, para citar um exemplo. A Renault disse, na época do lançamento do Kwid, que o modelo local era 150 kg mais pesado que o indiano devido aos reforços estruturais — que são feitos também por mais pontos de solda, além de elementos adicionados à estrutura também por solda.

Ainda há a questão tributária. Apesar de a carga tributária nominal estar “na média dos países da OCDE”, o Brasil tem uma peculiaridade rara em outros sistemas tributários mundo afora: imposto sobre imposto — o famoso “imposto em cascata”.

O imposto que melhor exemplifica essa jabuticaba fiscal é o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços, o famigerado ICMS. Ele incide em todas as etapas da cadeia produtiva e também sobre a eletricidade usada no automóvel e cada um de seus componentes.

Por que os carros populares não têm impostos populares?

Portanto, quando se diz que os impostos correspondem a cerca de 30% do valor final do carro, o que se considera é apenas os impostos que incidem sobre o carro pronto, sem colocar na conta os impostos sobre os insumos e componentes. São custos invisíveis para o consumidor final que, no fim da conta, fazem o carro brasileiro custar mais caro.

Para piorar, o ICMS incide sobre outros impostos, como o IPI e o PIS/Cofins, o que significa que sua base de cálculo não é o valor do produto em si, mas o valor do produto com os impostos federais. Em um exemplo simples: um produto de R$ 40.000 com alíquota de 7% de IPI e 17% de ICMS irá pagar R$ 40.000+2.800 (7%) de IPI, mas o ICMS será calculado sobre R$ 42.800 e não sobre R$ 40.000 — daí a “cascata” dos impostos.

 

Preço do carro vs. renda

Quando se fala que “o Brasil é o enésimo país mais caro para alguma coisa”, não significa que o produto X é mais caro aqui. Significa que a proporção entre o preço do produto X e a renda média do brasileiro é maior do que em outros países. Por que a renda média do brasileiro é R$ 2.715? Por que este é o valor da produtividade média do trabalhador brasileiro na economia globalizada.

Qual será o futuro da indústria automobilística brasileira?

O trabalhador brasileiro — e aqui estamos todos nós incluídos — é quatro vezes menos produtivo que um americano ou um alemão, e três vezes menos produtivo que um coreano. E não pense que é por preguiça ou falta de talento: a produtividade tem muito mais a ver com a qualidade da formação técnica e sua atualização, com a infra-estrutura das empresas, com a burocracia de um país e até com sua carga tributária. Aquela da qual eu falava mais acima, explicando como o carro fica mais caro aqui.

Nem mesmo a revolução tecnológica nos ajudou. Sabe quanto nossa produtividade aumentou desde 1995, apesar dos smartphones, computadores, autenticações e validações eletrônicas, banda larga móvel etc? Somente 1%. Sim, tudo isso nos tornou 1% mais produtivos. E o negócio piora: a produtividade do trabalhador brasileiro caiu em 2022 e está caindo ao longo de 2023. Ninguém explica isso no noticiário, mas é por isso que o nosso dinheiro vale cada vez menos — e que os carros parecem cada vez mais caros: se produzimos menos, é claro que vamos receber menos. Salário não é presente, afinal.

A diferença entre o preço dos carros e o preço do dinheiro

É por isso que o Brasil é o 5º lugar mais caro do mundo para se manter um carro, e os EUA e a Alemanha são, respectivamente, o segundo lugar e o sexto lugar mais  barato para se manter um carro. Por que a comparação é feita relativa ao salário anual. Os custos são parecidos, a diferença está na renda. O americano gasta 54% de sua renda anual para comprar e manter um carro. O alemão gasta 78% de sua renda anual para comprar e manter um carro. O brasileiro gasta 442% de sua renda média anual para comprar e manter um carro — 8,2 vezes menos que um americano e 5,6 vezes menos que um alemão.

Então chegamos à situação em que há um esforço conjunto do governo federal, governos estaduais, indústria e instituições financeiras para tornar o carro popular mais acessível, verdadeiramente popular — enquanto as motos é que cumprem o papel de verdadeiros veículos populares.

Provavelmente irá funcionar por algum tempo, mas em algum momento, durante o prazo do financiamento ou quando o poder de compra diminuir, nos veremos novamente na mesma situação, porque não estamos dando poder de compra ao público do carro popular, mas encontrando uma forma de ele se endividar com menos riscos ao comprar algo incompatível com sua renda. Lembra da conta do financiamento, mais acima? Quem vai pagar 45% do salário em uma prestação de carro?


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