Nunca mais veremos algo como o Lamborghini Miura. Primeiro, há sua incrível beleza: o ápice do desenho voluptuoso, cheio de curvas femininas belíssimas, que foi tão popular nos anos 1960. Depois é sua primazia em colocar algo tão gigante quanto um V12 de quatro litros atrás do piloto, fazendo algo ao mesmo tempo impossivelmente baixo para sua época, e impossivelmente avançado e temerário para os olhos de 1966.

Sua beleza faz adjetivos pequenos demais para se descrevê-lo. É tão definitivo que os maiores desenhistas de sua época brigaram por décadas sobre de quem era a autoria da obra: Giugiaro e Gandini. Depois do Miura, a briga por se fazer o caro mais bonito do mundo teve que ser sumariamente encerrada. É impossível de ser melhorado.
E por mais que pareça clássico, é também avançado: quando surgiu a Ferrari ainda não podia imaginar colocar motor central nas ruas; e seus V12 tinham só um comando. Tecnicamente, era uma nave espacial de um planeta distante, quando apareceu. E seu desempenho, algo simplesmente inacreditável em 1966, ainda que hoje, seja desempenho de Golf.

Mas e daí? Nenhum Golf grita como um Lamborghini V12 grita, nenhum Golf deixa você tão baixo e tão na frente do carro, a estrada sendo engolida aparentemente ali na frente, debaixo de seus pés. Nenhum Golf vibra seu corpo em uníssono com o inacreditavelmente grande e poderoso V12 aspirado aparafusado nas suas costas. Em nenhum Golf pode-se ver uma bateria de quatro Webers triplos virando a cabeça para o lado, ou olhando no retrovisor. Foda-se o Golf.

O Miura é mais que um carro, é uma fábula jovens engenheiros e designers se juntando num momento único da história para criar algo que transcende o mero produto industrial, apesar desta ser a definição do resultado. E por isso prova que definições são só palavras usadas para tentar explicar algo; se as fotos de lata de sopa de Warhol são arte, e o Miura é só um produto industrial, não sei o que é arte, e o que é um produto industrial.

O Miura é sonho e realidade, tecnologia e arte, desempenho e beleza, símbolo supremo de tudo que nos faz gostar de automóveis. Alfa e Omega; começo e fim; Julieta impossível de milhões de Romeus que proclamam seu amor em balcões virtuais como o do FlatOut. É o nosso impossível amor impossível de se esquecer.
With love’s light wings did I o’erperch these walls,
For stony limits cannot hold love out,
And what love can do, that dares love attempt.
Therefore thy kinsmen are no stop to me.
O automóvel Miura

Mas este Lamborghini é um automóvel também. E por mais que defini-lo tecnicamente com a fria lógica da técnica, da matemática e da engenharia pareça uma tentativa fútil de explicar a sua majestade, vale a pena tentar. Pois entendemos isso tudo como parte intrínseca desta criação divina da mão humana.

O Miura é basicamente um cupê criado com esperanças de pista; Dallara, Stanzani e Wallace, seus criadores mecânicos, ansiavam colocar a Lamborghini nas pistas, mesmo que Ferruccio, aquele com sobrenome na fachada, dissesse um sonoro não. Mas a época era diferente e as pessoas eram diferentes; trabalhavam ali não para fazer carreira ou alegrar o chefe, o faziam por precisar fazer, por uma chama dentro de si os impelir adiante. E Ferrucio não podia impedir isso, mesmo sendo dono; podia apenas dar passos para trás e se maravilhar do que acontecia ali, naquele novo galpão num escondido vilarejo do Regio Emiglia chamado Santa Agata Bolognese.

Em 1965, dia e noite, Giampaolo Dallara, Paolo Stanzani e Bob Wallace, dedicaram seu tempo ao desenvolvimento de um protótipo conhecido como P400, posteriore quatro litri. Trabalharam no projeto à noite, na esperança de convencer Ferruccio Lamborghini que o carro não seria muito caro nem desviaria o foco da empresa.

O resultado foi primeiro um chassi apenas. Um chassi-plataforma de chapas de aço dobradas e soldadas, que faziam a “banheira” central onde ficavam os ocupantes e era o elemento estrutural principal, com as caixas do túnel central e das soleiras juntando as duas paredes corta-fogo. O chassi era todo aliviado em peso com furos, feito um queijo suíço.

Atrás desta banheira estava o berço onde ia o V12 Lamborghini. O mesmo fabuloso motor de corrida DOHC que Bizzarrini vendeu para um Ferruccio que queria tudo menos isso. Aqui, o motor estava em posição transversal, e seu bloco ganhara uma carcaça de transmissão embaixo, para a montagem do câmbio. Assim, como no Mini inglês, o óleo do motor e do câmbio seria o mesmo, e mesmo ficando o motor meio alto por isso, fazia um rígido conjunto e dava espaço suficiente para caber transversalmente no baixo cupê.

As suspensões eram geometricamente perfeitas, por duplo A sobreposto nas quatro rodas, com braços largos e grandes. Na frente, de alguma forma conseguiram colocar um estepe de tamanho normal, praticamente debaixo do para-brisa. Os freios eram modernos discos Girling, nessa época ainda sólidos, mas grandes: 12 polegadas na frente e 11 atrás. Os pneus eram modernos radiais Pirelli Cinturatto 205/70 R15, montados em rodas de alumínio exclusivas fabricadas pela Campagnolo. Nenhuma assistência na direção de pinhão e cremalheira, nem muito menos nos freios de duplo circuito.

O chassi pronto é mostrado já em novembro de 1965 no salão de Turim. Não era o primeiro carro de motor central da história, longe disso, mas motor central era ainda algo raríssimo em produção seriada. E com um exótico V12 DOHC, mais ainda. Tanto que ninguém acreditou que seria produzido em série; para isso, uma carroceria de cair o queixo era necessária. Bertone, e Marcello Gandini, outro jovem então com 27 anos, cria sua carroceria inesquecível. E o resto, como se diz, é história.

Mas é este resto, esta história, que viemos contar aqui hoje. Todo Miura criado pela Lamborghini, do começo em 1966 até o fim em 1973. E um par deles feitos depois disso, de quebra. Em ordem cronológica, são eles:
Miura P400, 1966

O Miura na verdade ficava um pouco aquém dos 4 litri; o V12 media 82 × 62 mm, dando um total de 3.929 cm³, o que arredonda para 3,9 litros e não 4. O motor de qualquer forma era uma fera, impressionante até hoje: 350 cv a 7000 rpm, e 37,4 mkgf a 5000 rpm. Tinha dois comandos por cabeçote, totalizando 4 comandos, e duas válvulas por cilindro; quatro carburadores triplos Weber 40 IDL3C eram usados, e a taxa de compressão era de 9.8:1. O transeixo de cinco marchas era integrado ao motor, e ficava debaixo dele.

Todos os carros tinham chassis e portas de aço, com seções dianteiras e traseiras revestidas de alumínio. Aparentemente os 125 carros originais tinham chapas de aço mais finas. Os primeiros Miuras eram caracterizados por seus volantes de madeira e alavanca de câmbio reta, também; em certo ponto o P400 ganha volantes revestidos em couro e a alavanca de câmbio era ligeiramente curvada em direção ao motorista. Mas a maneira mais fácil de diferenciar um P400 dos modelos subsequentes é que o farol, o para-brisa e o acabamento da janela lateral são pretos, enquanto nos carros posteriores são cromados.

O P400 era originalmente equipado com pneus Pirelli Cinturato CN72, na medida 205VR15, em rodas de alumínio exclusivas com parafuso central knock-off. As medidas básicas do Miura não mudariam; todos medem 4.360 mm de comprimento num entre-eixos de 2500 mm, e são extremamente baixos aos 1.060 mm. O P400 pesava a seco 1,125 kg, e com todos os fluidos, 1292 kg.

Fazia o 0-100 km/h em 6,7 segundos; a Lamborghini dizia que era capaz de 300 km/h, mas ninguém o mediu acima de 275 km/h; era conhecido por ficar com a frente excessivamente leve depois de 200 km/h, então raramente foi testado além disso.
Miura P400 Roadster, 1968

Só um Miura roadster existe, um carro especial criado pela Bertone em 1968. Na verdade, um targa, baseado no P400, foi exibido pela primeira vez no Salão do Automóvel de Bruxelas de 1968. Alguns outros Miuras tiveram seus tetos removidos e transformados em conversíveis, mas o Bertone Miura Roadster foi o único Miura de fábrica com teto aberto.
Miura P400 S, 1968

O P400S, também conhecido como Miura S, foi apresentado no Salão Automóvel de Turim em novembro de 1968. É uma grande reformulação, na verdade, uma versão mais desenvolvida do carro. Originalmente, o S seria um pacote opcional sobre o P400 mas no fim acaba substituindo-o; poucos P400 foram feitos após a introdução do S.

O motor era basicamente o mesmo, mas com algumas mudanças, a principal delas nos dutos de admissão: foram aumentados de 28 para 30 mm de diâmetro. Com isso, e comandos de válvulas diferentes e outros ajustes no acerto, resultam em 25 cv a mais, para um total de 375 cv a 7700 rpm, e 39,6 mkgf a 5500 rpm. Era mais pesado, com 1,298 kg a seco, então o desempenho é semelhante ao do carro anterior: 0-100 km/h em 6,5 segundos.

Mas uma infinidade de outros itens foi alterado também. Os vidros das portas foram substituídos por vidros elétricos. Os revestimentos das portas foram trocados e um interruptor foi adicionado ao console central. No teto, havia agora um maneiro console, cheio de chaves aeronáuticas.

A soleira da porta foi revestida com uma chapa de aço inoxidável com a inscrição “Bertone” serigrafada; o compartimento central do “porta-luvas” recebeu uma tampa com trava, articulada na parte traseira e a manopla de câmbio de madeira foi substituída por uma manopla revestida de couro. Os pneus cresceram para 215/70VR15 na dianteira e 225/70VR15 na traseira, e originalmente eram Pirelli Cinturato CN12.

Depois de 140 carros P400S produzidos, uma “série 2” aparece, com mais uma rodada de melhoria. Os semieixos foram trocados de juntas universais por juntas homocinéticas; os freios a disco passaram de sólidos para ventilados nas quatro rodas. E olha vejam só: finalmente um ar-condicionado era opcional. O P400S é produzido até 1970.
Miura P400 Jota, 1970

Este é um carro criado pelo engenheiro de validação e piloto de testes da Lamborghini, o neozelandês Bob Wallace. Era na verdade uma mula de teste para tentar homologar o Miura nos regulamentos de corrida do Apêndice J da FIA. O carro foi apropriadamente chamado de Miura Jota (a pronúncia da letra ‘J’ em espanhol). Mais uma tentativa de entrar em competições; seria pela recusa de Ferruccio em gastar dinheiro nisso que no fim provocaria a saída de Dallara e de Wallace.
Wallace fez extensas modificações no chassi e motor. Em aerodinâmica também; na frente, um spoiler dianteiro tentava evitar o Miura de decolar, por exemplo. A suspensão foi retrabalhada e as rodas alargadas, 9″ na frente, 12″ na traseira, em liga de magnésio levíssima.

As reduções de peso incluíram a substituição de componentes de aço do chassi e painéis da carroceria pela liga leve de alumínio Avional e a substituição das janelas laterais por plástico, além do depenamento geral dos itens de conforto, com o carro resultante pesando aproximadamente 400kg a menos que um Miura de produção!

O motor foi preparado para dar algo em torno de 440 cv a estratosféricos 8.800 rpm, com uma taxa de compressão aumentada para 11,5:1, comandos de válvulas modificados, ignição eletrônica, lubrificação por cárter seco e um sistema de escapamento menos restritivo. Infelizmente além de nunca competir, o único carro foi vendido e destruído num acidente.
Miura P400 SV, 1971

O último Miura de produção normal é o SV, Spinto Veloce. É fácil de identificar por perder os “cílios” em volta dos faróis dianteiros. Também lanternas traseiras e parachoques são diferentes. Os para-lamas traseiros são também mais largos para acomodar as novas rodas traseiras e pneus Pirelli Cinturato 215/70R15 CN12 e 255/60R15 CN12.






Mecanicamente, os carburadores mudam de Weber 40IDL3C para os mais modernos 40IDL3L; junto com novos comandos e outra rodada de ajuste fino de Wallace, o motor chegava a 385 cv a 7850 rpm, e 40,8 mkgf a 5750 rpm.

Os últimos 96 carros também finalmente tinham um transeixo separado do motor, com sua própria lubrificação, o que permitia o uso dos tipos apropriados de óleo para a caixa de câmbio e o motor. Isso também aliviou as preocupações de que aparas de metal da caixa de câmbio pudessem entrar no motor com resultados desastrosos e caros, e tornou a aplicação do diferencial autoblocante opcional muito mais fácil. Como pesava o mesmo que o S, reputa-se que o SV conseguia fazer o 0-100 km/h em menos de 6 segundos.
Miura P400 SV/J

Lembram do Jota de Wallace? Pois bem; sua Majestade Imperial, o Xá da Pérsia Mohammad Reza Pahlavi, em uma de suas muitas visitas à fábrica da Lamborghini, vê o carro e se apaixona; pede uma versão de rua para si, baseada no SV de rua. Nasce o Miura P400 SVJ, ou SV/J.
O SVJ usava o V12 do SV, com 385 cv, e não o motor de corrida de 440 cv de Wallace. Existem seis exemplos do Miura SVJ construídos pela fábrica enquanto o Miura ainda estava em produção, um foi construído novo e cinco foram convertidos de SVs existentes. Um desses é o chassis 4934, que começou a vida como um Miura SV pintado Blu Ischia Metallizato com um interior branco. Mas antes de ser concluído, convertido no SVJ do nosso amigo Xá.


Existiu também um SVJ Spyder, embora seja apenas uma curiosidade: foi exibido no Salão do Automóvel de Genebra de 1981, muito depois do Miura descontinuado. É um carro pessoal do então dono da empresa, Patrick Mimran: com acabamento em branco perolado, o SVJ Spider era o antigo Miura S amarelo apresentado no Salão do Automóvel de Genebra de 1971, modificado.
Menção honrosa: Miura SVR

Este nunca foi um carro de fábrica; como o SVJ Spyder, foi criado modificando-se um carro antigo, na fábrica. Mas vale a pena mencioná-lo como a versão mais extrema do Miura a sair de Santa Ágata.


O alemão Hans Staber queria converter seu Miura S 1968 em Jota; mas como não fabricava mais Miuras em 1974, a fábrica lhe disse que não era possível. Como é comum entre milionários, não aceitou um não como resposta, e bateu nas portas da fábrica em fevereiro de 1975 munido de um conjunto de freios de um Porsche 917, componentes de suspensão Koni, enormes rodas BBS de três peças e uma tonelada de outros itens de alto desempenho. Ele também estava munido de uma lista de desejos do que queria que a Lamborghini construísse o carro; dinheiro não era um problema.

Oito meses depois, a Lamborghini deu a ele o carro: o Miura Jota SVR, o único assim no mundo.Com o motor de corrida semelhante ao do Jota de Wallace, com cerca de 440 cv. Com paralamas alargados e pneus muito maiores, e redução de peso, é reputado em fazer o 0-100 km/h em 4 segundos. O mais radical de todos os Miura, ainda que um que nunca foi um modelo de catálogo.