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Pensatas

A “segurança no trânsito” está fazendo motoristas piores?

Deu certo! Minha modesta proposta para resolver o problema da faixa da esquerda começou a ser adotada por motoristas de todo o Brasil. Se você não sabe do que estou falando, a modesta proposta sugeria a alteração da pista de circulação nas rodovias brasileiras. Em vez de se trafegar pela direita, com ultrapassagens pela esquerda, faríamos a inversão das pistas.

Uma modesta proposta – para resolver de uma vez por todas o problema da faixa da esquerda

Pude constatar pessoalmente em minhas últimas viagens pelo Sul-Sudeste do Brasil que os motoristas mais lentos finalmente se disciplinaram para andar tranquilamente enfileirados pela faixa de deslocamento, liberando a faixa de ultrapassagem. O problema, como ficou claro, era o lado da pista destinado a isso.

Quando a circulação deveria ser feita pela direita, os motoristas se mantinham à esquerda. Como eles já se mantinham à esquerda, foi só fazer essa mudança extra-oficial e não-declarada que o problema foi resolvido. Ao menos foi o que pude constatar em minha última viagem, pela BR-116 entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Eu me sentia na bem-comportada Inglaterra, vendo os carros todos enfileirados à esquerda e os pouco motoristas mais apressados saindo para ultrapassagem pela direita e logo retornando à esquerda.

Parecia um sonho. E era mesmo, um sonho sarcástico, que foi o último recurso que encontrei para lidar com a triste realidade das rodovias brasileiras.

Chega a ser irônico: nunca tivemos tantas rodovias tão boas, com asfalto bom, sinalização adequada e até infra-estrutura de apoio digna dos sonhos do passado, nunca tivemos carros tão velozes e tão seguros e tão confortáveis. Mas os motoristas… pelo amor de Zeus — como diriam os gregos.

O lado bom de se arrastar por uma rodovia cheia de gente que estaria mais rápido a pé, é que você tem tempo para contemplar o panorama e refletir sobre o assunto. E foi o que eu me pus a fazer naqueles tediosos quilômetros: “Caramba, eu estou em pleno 2023, em uma rodovia federal duplicada. O carro menos potente no meu campo de visão deve ser um Kwid de 71 cv. E mesmo assim está tudo embolado, caótico, sem motivo aparente”, eu pensei.

E pensando, observando e refletindo eu cheguei a algumas hipóteses sobre como o trânsito chegou a esse ponto, onde é mais rápido ultrapassar pela direita entre caminhões do que fazer o motorista brasileiro médio dirigir na faixa da direita.

 

O motorista brasileiro ficou com medo dos radares

Sim. O motorista brasileiro dirige pela esquerda, mas com medo de radar. Isso ficou evidente quando, ao pedir passagem para um SUV branco qualquer, o sujeito meteu o pé no freio antes de mudar de faixa. Considerando que estávamos perto do limite, presumi que fosse esse o motivo — afinal, não faz sentido você frear na frente de um carro que lhe pede passagem.

Ao longo da viagem notei muito desse comportamento. O sujeito vai ceder passagem e pisa no freio antes de mudar de faixa. A manobra segura sinalizar a mudança de faixa e, em seguida, fazer a manobra em velocidade constante. Frear ou acelerar acrescentam uma dose de risco pela imprevisibilidade. Mas, por que alguém que sai da faixa da esquerda faz isso freando? Presumo que é o medo de ser multado.

É o resultado do adestramento dos motoristas brasileiros. Essa classificação, “adestramento”, não é minha, mas do presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária, José Aurélio Ramalho. O motorista brasileiro funciona como um cão de guarda, que reage automaticamente aos gatilhos ensinados por seu adestrador. Perceber que se está a 111 km/h em vez de 109 km/h faz o motorista frear o carro. Avistar um radar o faz frear, ainda que já estivesse bem abaixo do limite, em velocidade segura.

Foram anos de slogans entoados pelas autoridades — “velocidade mata”, “respeite os limites e salve vidas” — e castigos financeiros em forma de tortura psicológica: a multa, depois de 30 dias, causa indignação e sensação de impotência. Você não fez nada que parecia errado, não colocou ninguém em risco, todo mundo chegou são e salvo, mas você foi multado porque estava a 111 km/h e isso é acima do limite. Se estivesse a 110 km/h não estaria acima, então não seria perigoso. Não seria multado.

Então, motivado pela impotência diante deste flagrante abuso de autoridade, o motorista se rende. Só que a rendição não vem na forma de uma direção mais segura — porque ele já fazia isso. A rendição vem na forma de dirigir para evitar a causa da multa. E aí o resultado são os motoristas que freiam à toa — seja ao mudar de faixa, ou repentinamente na pista da esquerda.

Eu estava quase me esquecendo deste outro tipo de motorista: o que freia repentinamente sem motivo algum. Um poste de luz confundido com um poste de radar é motivo suficiente. E ele nem precisa estar acima do limite. O medo de ser multado faz isso.

Ou mesmo a percepção de se estar pouco acima do limite faz este motorista frear para adequar a velocidade. Esse hábito adquirido pelo medo de multas pode causar um engavetamento, mas ao menos ele não excedeu o limite de velocidade — e é isso o que importa para a segurança do trânsito brasileiro, segundo a propaganda em massa.

 

O motorista brasileiro não está habituado a velocidades rodoviárias

O mundo mudou rapidamente nos últimos 20 anos. O crescimento demográfico foi enorme — levamos 11 anos para ir de 7 a 8 bilhões de habitantes. É claro que as cidades estão mais cheias e o trânsito, menos fluido. Também há mais coisas possíveis de se fazer remotamente. A pandemia atual nos mostrou isso. Até mesmo prefeituras conseguiram fazer trabalho remoto.

Bairro planejado

Há ainda a descentralização das cidades. Bairros mais independentes, deslocamentos mais curtos, menos uso do carro. Isso ajudou a reduzir os deslocamentos pessoais — sejam eles a pé, de bicicleta, moto, ônibus ou carro. As pessoas precisam sair menos de casa para realizar os afazeres do dia-a-dia. E quando saem, se deslocam menos. O carro é usado por mais tempo nas viagens de férias e feriados prolongados, quando as rodovias estão cheias e a velocidade é naturalmente reduzida.

Mas nessa condição aparece o outro lado das mudanças na mobilidade: há uma parcela de motoristas que não tem experiência de estrada. Não dirigem em velocidades mais elevadas que a de uma via expressa ou um anel viário, normalmente limitados a 60 km/h, 70 km/h ou 80 km/h. Dirigir a 120 km/h é algo que estes motoristas fazem raramente porque, em primeiro lugar, dirigem pouco em locais onde isso é possível. Depois, porque, mesmo onde é possível, existe o risco de ser punido por se dirigir a esta velocidade.

No fim das contas, temos rodovias Classe 0, tecnicamente capazes de comportar velocidades de até 160 km/h, mas não temos motoristas capazes de usá-las por não estarem habituados. E isso afeta até mesmo as fileiras na faixa da esquerda de um jeito que explicarei no próximo tópico.

 

O motorista brasileiro não sabe o que é “distância segura” nas rodovias

“Mantenha distância segura” é outro princípio da educação de trânsito que começou a mais atrapalhar que ajudar. A afirmação está correta, a gente precisa mesmo manter distância segura do carro da frente. Mas… quanto é uma distância segura?

Não existe uma resolução do Contran que diga “a 90 km/h, a distância segura deve ser de X metros”. Distância segura é uma medida variável, que depende da percepção do motorista, porque ela é a distância suficiente para que o motorista perceba o risco e reaja a ele de forma segura, sem colidir com o carro à frente. E isso varia de acordo com o carro que você usa, com a velocidade em que você dirige e até mesmo com seu estado de espírito. Um motorista cansado tende a reagir mais lentamente, não?

Como a distância segura é uma medida de direção defensiva natural, quanto mais experiência em diferentes ambientes de trânsito, mais apurada será essa percepção. Então, os motoristas que pouco dirigem, têm essa percepção pouco refinada. E o resultado são distâncias exageradas entre os carros na faixa da esquerda, alternadas com carros próximos demais, como se estivessem no lento trânsito urbano.

Isso causa dois problemas: a reação em cadeia quando um motorista freia repentinamente na faixa da esquerda (por medo de radar ou não), que pode resultar em um “congestionamento fantasma” (aqueles que começam e terminam sem motivo, como no vídeo acima) ou em um “puxador de fila”, que mantém espaço demais para o carro da frente. Então os carros se enfileiram atrás dele, com distâncias menores e, você já sabe o que acontece: alguém freia e, na melhor das hipóteses, teremos uma reação em cadeia que causa um congestionamento fantasma. Na pior, um engavetamento.

 

As rodovias são avenidas… às vezes

Um dia as rodovias ficavam longe das cidades. Mas o crescimento urbano acabou aproximando as cidades das rodovias e muitas delas acabaram abraçadas. Há rodovias que já se tornaram avenidas municipais. A rodovia Raposo Tavares (SP-270) em São Paulo, na altura de Cotia, é uma delas. Em Santa Catarina a BR-282, entre São José e Florianópolis é outro exemplo. No Paraná temos as BR-376 e 277. Em cada grande centro urbano você terá uma rodovia que foi transformada em avenida pelo uso.

Para piorar, as mudanças para reduzir a velocidade no trânsito urbano, visando mais segurança para pedestres e ciclistas, tornam as rodovias próximas alternativas rápidas para chegar ao outro lado da cidade. Muitas prefeituras até consideram as rodovias no planejamento do trânsito urbano, embora isso não seja oficialmente registrado. Mas esse problema existe. Em São Paulo, o Departamento de Estradas de Rodagem teve de alterar os limites no trecho em certa rodovia devido ao uso urbano — apesar de ela ligar a capital ao interior do Estado.

O problema disso é que se tem motoristas de longos percursos, que estão dirigindo há uma ou duas horas a 100 km/h, por 150 km e, repentinamente, encontram motoristas que estão há 40 minutos dirigindo a 30 km/h dentro das cidades e acabam saindo para a rodovia porque é mais rápido que cruzar a área urbana e seus semáforos e cruzamentos.

O resultado: para o motorista da rodovia, 80 km/h vai parecer pouco; para o motorista da cidade, 80 km/h vai parecer muito. E aí temos esse conflito de percepção. É muito comum topar com motoristas do trânsito local em baixa velocidade na faixa da esquerda. Não por falta de habilidade, mas por que ele estava condicionado ao trânsito urbano, onde 80 km/h é rápido demais. Ele precisa de tempo para “ligar o modo estrada” em sua cabeça. E aí, mesmo estando em velocidade permitida, ele estará em situação de insegurança devido ao diferencial de velocidade relativo aos demais veículos da rodovia.

Aos poucos, fica claro como a segurança do trânsito depende de um esforço abrangente, que considera não apenas o comportamento dos motoristas e a punição aos seus desvios que trazem risco, mas também levem em conta a infra-estrutura e, acima de tudo, a formação dos condutores. Há pessoas realizando atividades muito mais perigosas do que dirigir, e elas voltam para casa em segurança no fim do dia. E elas fazem isso porque conhecem claramente os riscos e sabem como lidar com eles. Que os motoristas sejam assim, também.


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