É impossível ignorar o enorme impacto econômico, tecnológico e cultural da maior fabricante de carros elétricos do mundo: a Tesla. A despeito dos rompantes do CEO sul-africano Elon Musk, a empresa que já foi uma startup em Palo Alto, Califórnia, no distante 2003, hoje é simplesmente uma das companhias mais valiosas do mundo.
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Foi a Tesla (e, por extensão, Elon Musk) que provou ser possível fabricar um carro elétrico que funcionasse no mundo real como produto, não apenas como um conceito – e o fez em 2005, quando foi lançado o Tesla Roadster, um Lotus Elise com outra frente e baterias no assoalho. E foi só o primeiro passo: em 2012, veio o Model S – um sedã de luxo totalmente projetado in-house que virou objeto de desejo dos descolados e foi a pedra fundamental na construção do culto ao redor de Musk e seu império. Um acessório fashion com design minimalista, desempenho de supercarro e, como bônus, a sensação de consciência limpa por comprar um carro que não polui. Ao menos não pelo escapamento.
Hoje, além do Model S, a Tesla tem o SUV Model X, de porte semelhante; e modelos menores e mais acessíveis – o Model 3 e sua versão crossover, o Model Y. Todos elétricos, todos totalmente desenvolvidos e fabricados pela própria Tesla, e todos muito procurados por quem quer se mostrar em dia com as tecnologias mais recentes adotadas pela humanidade. Problemas de construção e acabamento e controvérsias com o sistema Autopilot não incomodam os admiradores – que, muitas vezes sequer são entusiastas dos carros, mas de novas tecnologias e gadgets.
No frigir dos ovos, pode-se dizer que a Tesla também foi fundamental para o desenvolvimento acelerado dos elétricos nos últimos dez anos. E que, ao menos em parte, seu sucesso também foi responsável por convencer outras fabricantes de automóveis e governos a estabelecer um prazo para o fim dos veículos a combustão.
Mas outra empresa especializada em carros elétricos pode representar uma ameaça concreta ao reinado de Elon Musk: a Lucid Motors, que lançou recentemente seu primeiro modelo – o sedã Lucid Air.
Quem?
Uma das primeiras sugestões que aparecem quando se pesquisa a respeito da Lucid na Internet é o termo “Lucid Air Tesla Killer”. Isso diz muita coisa – o veículo, apresentado em sua versão de produção em setembro de 2020, tem sido visto pelo público, pela imprensa, pelo mercado e pela indústria como o primeiro capaz de encarar o Model S de frente.
E a ameaça, tecnicamente, vem de dentro: a Lucid Motors conta. E, sem qualquer pudor algum, promete superar os Tesla em absolutamente tudo – preço, acabamento, desempenho, consumo de energia e tempo de recarga. Mas será que é isso mesmo?
Fundada na Bay Area de São Francisco, Califórnia, pelos empresários Bernard Tse e Sam Weng, a Lucid começou em 2007 como fornecedora de baterias para carros elétricos e outras aplicações veiculares sob a marca Atieva, hoje extinta. Em pouco tempo teve início o desenvolvimento de seu primeiro veículo, ainda sem forma definida, usando uma minvan Mercedes (apelidada “Edna”) para testar o powertrain elétrico. O conceito evoluiu para um sedã de luxo no início da década passada, e o Lucid Air foi apresentado como protótipo em dezembro de 2016.
Assim que foi revelado o Lucid Air causou uma excelente impressão e entrou no radar dos veículos especializados em carros elétricos e tecnologia. Hoje, até a imprensa automotiva tradicional considera o Air como o primeiro carro verdadeiramente capaz de ser um Tesla Killer.
A peça chave nesse processo todo foi uma pessoa em específico: o engenheiro Peter Rawlinson, que entrou para a Lucid Motors em 2013 como diretor-chefe de tecnologia e, desde 2019, é o CEO da empresa. Rawlinson é um nome conhecido dos fãs da Tesla por ter sido nada menos que o vice-presidente de engenharia da fabricante, e também o engenheiro-chefe por trás do próprio Model S.
Ou seja: Rawlinson agora está empenhado em superar o carro que ele mesmo criou. Dizem que o segredo para vencer uma guerra é conhecer seu inimigo – e poucas pessoas conhecem o Tesla Model S melhor que Rawlinson.
Como?
Chefiados pro Rawlinson, os engenheiros da Lucid criaram um carro que é, definitivamente, inconfundível. O Lucid Air é um sedã, claro, mas seus três volumes são quase indistintos entre si – dianteira curta, traseira curta e uma longa porção central unidos por uma linha quase contínua de ponta a ponta.
A dianteira tem os faróis interligados, assim como as lanternas traseiras, e a tampa do porta-malas traseiro tem uma abertura inusitada – toda a seção traseira, incluindo parte dos para-lamas e as lanternas, deixando uma abertura muito maior. E, como no Model S, ainda há um porta-malas na frente. O design do carro é assinado por uma equipe cujo líder é o vice-presidente da Lucid Motors, Derek Jenkins – ex-projetista da Mazda, que também foi diretor de design do atual MX-5 Miata de quarta geração.
O visual do Lucid Air é pouco convencional e pode não ser muito fácil de digerir, mas sem dúvida causa impacto e o torna bem diferente, esteticamente falando, do Model S.
O interior do carro tem outro aspecto interessante: em vez de apostar no minimalismo a todo custo, o habitáculo tem mais “cara de carro” – e, na contramão até de algumas fabricantes tradicionais, faz questão de manter comandos físicos tradicionais no console central e no volante. O cluster de instrumentos, ao estilo dos mais recentes modelos da Mercedes-Benz, combina uma tela digital atrás do volante a outra tela para a central multimídia. E é altamente conectada, com integração de smartphones e com o assistente virtual Amazon Alexa. E, da mesma forma que ocorre com os carros da Tesla, novas funcionalidades serão adicionadas com o tempo através de updates over-the-air.
A construção também é semelhante à dos Tesla: o carro é montado sobre uma plataforma do tipo “skateboard”, onde ficam as baterias e os motores elétricos, e usa monobloco e carroceria de alumínio para reduzir peso e aumentar a autonomia. As dimensões são muito semelhantes – ambos têm pouco menos de cinco metros de comprimento e dois metros de largura, e têm entre-eixos idêntico: 2.960 mm.
Até mesmo o coeficiente aerodinâmico dos dois carros é praticamente igual: 0,208 no Model S e 0,21 no Air. Um detalhe curioso: a Lucid não divulga o peso do carro em ordem de rodagem. Informações extra-oficiais falam em peso seco de 2.300 kg – única desvantagem aparente contra o Model S, que pesa 2.250 kg em ordem de rodagem.
O que a Lucid Motors anuncia como seu grande trunfo está mesmo no powertrain. O Lucid Air é movido por um conjunto de baterias de íon de lítio desenvolvidas especialmente para o projeto – que, afinal, estão há mais de dez anos sendo constantemente aperfeiçoadas e prometem não apenas mais autonomia, mas também recargas mais rápidas e maior durabilidade – o que inclui mais tolerância a repetidos ciclos de recarga rápida e longos períodos sem uso.
Além disso, a bateria do Lucid Air tem capacidade de 113 kWh – uma boa vantagem sobre os 100 kWh do Model S – e o suficiente para atingir mais de 830 km de autonomia (novamente, um salto ante os quase 670 km do Model S Long Range).
Acontece que nem só de baterias grandes vivem os elétricos. Sem revelar os detalhes técnicos, o executivo contou ao site InsideEVs que a ideia é colocar o foco na eficiência e na distribuição de pontos de recarga ultrarrápida. Desse modo, embora o Lucid Air possa atingir até 800 km de autonomia com uma carga, as pessoas não precisem contar com isso. “Se eu sei que posso recarregar meu carro de forma ultrarrápida em qualquer lugar que eu vá, por que vou querer mais de 250 km de autonomia?”, comentou o executivo.
É por isso que, além da autonomia, o Lucid Air tem arquitetura elétrica de 900 volts – superior ao o Porsche Taycan e seus 800V, e bem mais que os 400V do Model S. Com maior voltagem, o Lucid Air já está preparado para os sistemas de recarga ainda mais rápidos que são esperados para os próximos cinco ou seis anos.
Para transformar tudo isso em realidade, a Lucid conta com o apoio de uma série de investidores – empresas com nomes desconhecidos do grande público, porém importantes no mercado de ações, como Venrock, Mitsui e JAFCO. O investimento mais recente, porém, foi o mais importante: o Fundo Público de Investimentos da Arábia Saudita – um dos maiores do mundo, com patrimônio líquido de ao menos US$ 350 bilhões (estamos falando de R$ 1,85 trilhão em conversão direta) injetou, em abril de 2019, mais de US$ 1 bilhão na Lucid Motors (a cifra exata não foi divulgada) para bancar as últimas etapas do desenvolvimento do Air, bem como a construção de uma nova fábrica no Arizona, o início da produção do carro, e a infraestrutura de concessionárias, começando pelos Estados Unidos.
Quanto custa? E como anda?
E sim, o Lucid Air já está à venda. Como o Model S, ele oferece diferentes níveis de potência: Air Pure, com 480 cv e autonomia de 653 km; Air Touring, com 628 cv e a mesma autonomia; Air Grand Touring, com 811 cv e 832 km de autonomia (a maior da linha); e Air Dream Edition, com 1.094 cv e 809 km de autonomia. A versão Air Pure é a única com apenas um motor e tração traseira – todas as outras usam dois motores e possuem tração integral. Os preços variam entre US$ 69.900 e US$ 161.500.
A intenção não é competir com a Tesla em preços, então a gama não se afasta muito do quanto Elon Musk cobra pelo Model S – que parte de US$ 79.990 na versão Long Range, com dois motores, 564 cv e autonomia de 663 km com uma carga; e chega aos US$ 149.990 na versão Plaid+, que dispõe de mais de 1.100 cv e promete mais de 840 km de autonomia. Essa versão, aliás, foi criada em resposta ao Lucid Air, mostrando que Elon Musk ficou incomodado com a concorrência.
Em desempenho, ambos se equivalem: o Model S Plaid+ vai de zero a 96 km/h em 1,99 segundos, enquanto o Air Dream Edition faz o mesmo em “menos de 2,5 segundos” – te desafiamos a sentir essa diferença de meio segundo dentro do carro. O quarto-de-milha de ambos fica na casa dos 9 segundos, e os Lucid Air tem velocidade máxima maior: 350 km/h contra 320 km/h.
Embora a vantagem técnica do Lucid Air seja relativa em relação ao Model S, é fato que a concorrência direta de outra fabricante californiana deve causar impactos na Tesla – e certamente vai acelerar ainda mais a evolução dos elétricos. Tanto nos carros high end altamente especializados (como os dois que estamos comparando), quanto nos modelos de maior volume e preço mais acessível – os carros elétricos que pretendem substituir os automóveis que compramos hoje.
O que já conseguimos enxergar, porém, é uma postura mais tradicional da Lucid Motors em relação ao marketing e a forma como a empresa é conduzida – incluindo sua imagem junto ao público. É bem possível que os consumidores que pensam em comprar um carro elétrico pelo carro em si, e não pelo fator novidade, pela imagem descolada, prefiram a rival de Elon Musk.
A impressão é que, mesmo com as vantagens técnicas (que, ao menos até agora, não são tão impressionantes assim), o que realmente fez com que a Lucid Air ganhasse a reputação de “Tesla killer” é algo mais simples e subjetivo: a empresa foi a única que desenvolveu um produto equivalente ao Model S do ponto de vista técnico e mercadológico, obtendo assim apoio financeiro para colocá-lo em produção – sem mirar na lua, sem carros no espaço, sem brigas na Internet, sem excentricidades na comunicação com o público – só um bom produto, coerência e pés no chão. Que vença o melhor.
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