FlatOut!
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Car Culture

O Agente, capítulo 4: uma oficina mecânica no meio do deserto

Os portões se abriram lentamente – eram pesados, e mesmo a força dos dois homens quase não deu conta.

Mas, sozinho, o fato de aquele portão realmente se abrir já era surpresa o suficiente. Se recordava-se corretamente, o Agente já havia passado por ali ao menos duas vezes, a serviço. Esforçou-se para encontrar um motivo para tal negligência – e fracassou. Seus números eram os melhores do quadrante (para quem passava mais tempo na viatura do que no próprio apartamento, estranho seria se não fossem), e uma apreensão como aquela certamente lhe garantiria um bônus generoso ao fim do mês. Talvez até uma promoção e, com ela, a chance de abandonar as patrulhas e trabalhar para o resto da vida atrás de uma mesa. “Deveríamos ter mais oficiais como você”, diria o chefe da divisão. “Você não é tão idiota quanto os outros. Eu já estou me para me aposentar, e…”

O devaneio acabou abruptamente quando o Agente se deu conta de onde estava.

O pequeno galpão destoava completamente da paisagem árida e pós-apocalíptica que o cercava. Um oásis de civilização no meio do fim do mundo. A decoração era exatamente igual à de qualquer outra acomodação individual padronizada da cidade branca – um flat uma cama grande, uma escrivaninha com um computador, uma pequena cozinha e o banheiro. Imediatamente o Agente se sentiu em casa.

Só havia um detalhe: o leve aroma de combustível, quase imperceptível, porém presente a todo momento.

A porta pesada, que havia dado tanto trabalho para abrir, se fechou sozinha atrás dele e rapidamente camuflou-se atrás da parede eletrônica, deixando apenas a superfície imaculadamente branca à vista. Era como um breve choque de realidade. O dono daquele Crown Victoria com motor de Mustang GT500 era, no fim das contas, um cara normal, que vivia uma vida normal em uma acomodação normal. Só gostava de acelerar veículos proibidos de tempos em tempos.

Era um pouco decepcionante, até.

– Gostou do meu canto? É aqui que eu fico praticamente o tempo todo. Olha, não preciso de mais nada. Já faz umas três semanas que eu não volto para a cidade, e já faz alguns anos que eu construí essa fortaleza aqui e até agora ninguém me achou. Nem você, meu irmão! Aliás, como foi que você nunca me achou?

Falsa modéstia de merda. Era óbvio que o rapaz havia investido uma boa quantia para esconder seu “canto”.

O Agente não queria demonstrar o quanto estava curioso. Ele ainda era a Lei por ali – a qualquer momento ele poderia algemar o rachador, levá-lo de volta até a viatura, entregá-lo à Divisão de Interceptação e Captura e esperar o extra cair na conta. Então, era bom que a perda de tempo valesse a pena.

– Corta essa, cara. Você não veio aqui para me mostrar o seu quarto. Tá com pressa de tomar prejuízo?

– Tenha paciência, “senhor policial”. Saca só isso aqui.

O rachador foi até a escrivaninha e apertou um botão oculto sob o tampo. A porta se abriu novamente, e o Agente lutou com todas as forças contra o instinto de voar sobre o meliante, imobilizá-lo e colocá-lo na viatura. O veículo já devia estar estacionado do lado de fora àquela altura e o rapaz era esquálido. Não levaria dois minutos.

Mas ele ainda estava grato demais pelo passeio no Crown Vic GT500 para fazer isso. Iria ao menos ver onde aquilo tudo iria parar.

– Eu já venho.

O rapaz entrou no Crown Vic e ligou o motor, que acendeu com um rugido. O Agente não tinha percebido, mas o espaço entre os móveis da acomodação tinha o tamanho exato para acomodar o carro, que segundos depois estava perfeitamente encaixado no apartamento/galpão/garagem.

– Então você mora na sua garagem. Uau. Bom, já chega, eu tenho mais o que fazer e você também deve ter.

As palavras secas do Agente davam seu melhor para esconder a gratidão que ele sentia pelas últimas duas horas ao volante do sedã. Mas ele não tinha certeza se soara convincente.

– É, eu sei. O meu pai deve estar me esperando agora, eu estou atrasado para o fechamento do mês. E ainda vou chegar com mais uma multa!

“Típico”, pensou o Agente. “Trabalha na empresa do papai. Acha que tudo é brincadeira.”

– Entra aí!

Meio a contragosto, o Agente fez como seu “prisioneiro” dizia. Abriu a porta do Crown Vic, sentou no banco do carona e esperou.

Outro botão, escondido sob o porta-luvas, foi alcançado pelo jovem piloto do deserto. O Agente olhou pelo vidro e viu tudo subindo – na verdade, o carro estava em cima de uma plataforma poucos centímetros mais longa e mais larga, e descia para o subsolo. Mas seu tamanho era apenas uns poucos centímetros maior que o carro. Para descer junto do carro, só entrando nele.

O Agente ouviu um leve estalido e sentiu a plataforma tocar o chão. Deviam estar a uns 200 metros da superfície quando outro portão – automático, dessa vez – se abriu à frente do Crown Vic. O rachador deu mais duas aceleradas fortes, engatou a primeira marcha e adentrou o novo recinto.

A operação toda levou cinco minutos. E a pequena decepção que o Agente havia sentido ao descobrir um flat pós-moderno oculto sob um portão enferrujado dissipou-se completamente quando as luzes se acenderam.

O teto era alto – tinha seus três metros de altura. O piso era quadriculado, preto e branco, sujo de óleo, graxa e gasolina. Não se via a cor das paredes – apenas tudo o que estava pendurado nelas. Incontáveis prateleiras com peças de motor, capacetes, indumentária de corrida e alguns troféus que seguramente tinham mais de um século. Pôsteres decoravam o espaço que sobrava – fotos de carros antigos, corridas de automóveis e pessoas cujo rosto ele já havia visto em suas longas sessões de pesquisa na madrugada.

O Agente se considerava um historiador por hobby. Todo seu tempo livre era dedicado a conhecer as fabricantes do passado, assistir gravações antigas de competições automobilísticas e ler a biografia dos personagens mais relevantes para a história do automóvel. Um conhecimento vasto, porém inútil na sociedade de 2112, que abominava qualquer tipo de atividade que, remotamente, pudesse trazer de volta a ideia de dirigir por diversão.

Mas essas coisa nunca precisaram fazer sentido.

E ainda havia mais para ver. Muito mais. O lugar devia ter pelo menos meio quilômetro quadrado – espaço suficiente para tudo o que uma boa oficina mecânica de antigamente precisava ter: elevador, dinamômetro e até um guincho hidráulico. Várias bancadas de ferramentas, pneus empilhados, galões de combustível e óleo de várias especificações, estantes cheias de manuais e revistas e, claro: um calendário de vários anos atrás com a foto de uma mulher belíssima, pouco vestida e muito provocativa, pendurado bem ao lado do elevador.

E também havia espaço para os carros – o Crown Vic estava ali, mas ainda caberiam mais uns três ou quatro. E talvez até sua viatura pudesse ser enfiada ali, mesmo que nada daquilo tivesse serventia para trabalhar no veículo. A manutenção era feita pela própria Fabricante, pois só eles tinham acesso aos motores elétricos, ao gerador bioquímico de eletricidade e aos sistemas eletrônicos patenteados. O Agente já havia tentado violar os lacres inúmeras vezes e já havia sido advertido por isso. Se não fosse tão bom no que fazia, provavelmente já teria tomado uma suspensão. No começo, a ideia de um sistema proprietário de acesso restrito parecia absurda, mas depois as pessoas se acostumaram a não entender nada sobre os dispositivos que usavam todos os dias. O Agente achava isso deprimente, mas já tinha se acostumado.

O que ele ainda não conseguia suportar direito era o cheiro de combustível. Delicioso – sequer parecia o combustível sintético que ele carregava no compartimento traseiro da viatura, mas sim gasolina fóssil de verdade, de alta octanagem e puríssima. Sua cabeça começava a doer e, novamente, ele teve de se concentrar para não deixar transparecer o que sentia.

– Sim, eu já tô aqui. E eu trouxe alguém que o pessoal vai gostar de conhecer.

Absorto em seus pensamentos, absorvendo a visão de tudo aquilo ao seu redor, e aborrecido pela dor de cabeça, o Agente nem havia percebido que o rachador estava em uma ligação.

– Que merda é essa?

– Opa, acho que já tá na hora de você relaxar. Eu já avisei o velho que vou perder a reunião e falei sobre a multa. Depois eu lido com ele. O pessoal já tá chegando e você não vai querer perder.

“Quer saber? Foda-se”, pensou o Agente. “Na pior das hipóteses vai todo mundo pra Divisão e eu posso tirar o resto do mês para descansar.”

– Dez minutos. Depois, a gente vai pra Div… pra delegacia, você paga a multa e cada um vai cuidar da sua vida.

– Tá bom, tá bom. Eu já rodei antes, no quadrante vizinho. Mas o outro Agente que me pegou era um filho da puta e mandou o meu carro pro ferro-velho. Você precisava ver, era um Diablo roxo igualzinho aquele da foto! Noventa e quatro, V12, cê precisava ver. Nem tive coragem de fuçar nele, mal passava dos 300 mas, porra, eu tenho certeza que era o último do mundo, literalmente. Enfim, eu sei como é, sei que é o seu trabalho, mas prometo que depois disso a gente nunca mais se vê.

“Filho da puta mesmo”, o agente falou para si. Mas podia ter sido qualquer um – ele não conhecia um Agente, fora ele próprio, que não odiasse os carros. Sádicos. Alguns até faziam questão de se juntar para assistir a destruição mensal de apreensões. O Diablo provavelmente já tinha sido pulverizado e descartado. O salário era bom, mas para alguns Agentes, o verdadeiro pagamento era a chance de mandar o cubo residual para o endereço de cada rachador. Alguns até escreviam “seu carro” em um dos lados, só de gozação. Mas que graça aquilo tinha?

– Vamo lá, eles já tão chegando.

Enquanto se perguntava por que diabos o rachador falava daquele jeito, o Agente entrou novamente no Crown Victoria, que seguiu por um portão que se abria na outra extremidade da oficina. Do outro lado, um caminho subterrâneo certamente levava até outro local secreto, e o Agente já não se importava mais com as horas, com a operação, com a captura, com a bonificação. Só queria entender o que era aquilo, quem eram aquelas pessoas e, bem, por que ainda não tinha feito o que era pago para fazer.

O ronco do motor saía pelas quatro ponteiras de escape, reverberava nas paredes do túnel e era devolvido com muito mais intensidade aos ouvidos do Agente, que deleitava-se com cada nota, cada timbre, cada decibel que atingia seus tímpanos. O carro fazia barulho, vibrava, tremia, chacoalhava. Tinha cheiro, textura. Tinha alma. Uma maldita máquina que queimava combustível e produzia gases nocivos e, ao lado de milhões de outras máquinas iguais, foi responsável por quase acabar com a raça humana. Ou ao menos era isso que ele havia ouvido na escola, quando sequer sonhava em tornar-se um Agente.

Mas o Agente não aprendeu a lição. Em casa, através da Rede, ele tinha descoberto que aquelas máquinas supostamente terríveis e perigosas e condenáveis um dia tinham sido algo completamente diferente. Elas já foram objetos de desejo, símbolos de status e prestígio, ferramentas úteis, essenciais, onipresentes. Já tiveram seu lugar de honra entre as grandes conquistas da humanidade.

E, como se não bastasse, tinham potencial para proporcionar imensa alegria a quem estivesse em seu comando. Bastava olhar para o rapaz esquálido e desgrenhado no banco ao lado, que sequer estava acelerando com vontade, mas parecia desfrutar cada segundo ao volante com imensa alegria.

“Quando foi que a gente perdeu isso?”, perguntou-se mentalmente. O carro era só uma máquina. Um objeto inanimado e, sem ninguém para conduzi-lo, inerte, inofensivo e incapaz de qualquer coisa. Boa ou ruim. Então, de repente, decidiu-se que era hora de acabar com ele. Por quê?

O Agente nem teve tempo de terminar seu monólogo interno – quando deu por si, o Crown Vic já estava do lado de fora. O portão, alojado entre as pedras na beira da estrada, ocultou-se. “Tem muitos hologramas aqui. Esse cara deve ter muita grana”, especulou.

– Olha aí! Eu nunca canso dessa porra! Desce, aí, cê vai perder!

O Agente relevou e consentiu – queria saber de que “porra” era aquela, e a curiosidade incomodava mais que a falta de respeito. E então, exatamente como nas primeiras horas da manhã, uma rastro de poeira começou a se formar no horizonte. Depois, eram três. E o ronco uníssono de vários cilindros explodindo por dentro começou a ficar cada vez mais próximo.

De óculos escuros e braços cruzados, o Agente observava atento a dança dos três delinquentes. Ele ainda não conseguia discernir as formas dos veículos, mas reconhecia cada um de seus sons.

Surpreso, ele percebeu que sua viatura estava logo ali – provavelmente guiada pelo rastreador. Quando ficava muito tempo sem receber comandos ou identificar possíveis ameaças, a viatura ia sozinha até o local mais próximo possível de seu Agente designado. Através do controlador remoto preso a seu pulso, o Agente deu ao veículo a ordem para assumir o modo stealth (que, ironicamente, usava a mesma tecnologia holográfica patenteada que a oficina secreta). Não queria acabar com a festa antes da hora.

– Bom, eu acho que você vai querer se apresentar, né. Ou levar todo mundo em cana.

– Em cana?

– É, pro xilindró. Xadrez, prisão, cadeia, gaiola. Pra delegacia.

– Não. Pra vocês eu sou o Agente. E ninguém vai preso. Não hoje.

 

* * *

The story so far…

O Agente, capítulo 1: Combustão noturna

O Agente, capítulo 2: O futuro de Mad Max não aconteceu

O Agente, capítulo 3: Crown Victoria GT500