Uma notícia aparentemente bombástica circula nos últimos dias: a Lamborghini pretende fabricar esportivos elétricos em Santa Catarina. Na última quinta-feira (22) a governadora do Estado, Daniela Reinehr, recebeu representantes da empresa no Centro Administrativo do Governo de SC a fim discutir um possível acordo.
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A reunião aconteceu mesmo, e a pauta envolveu diversos aspectos da instalação da Lamborghini na capital catarinense. Além de fabricar esportivos elétricos, a empresa também pretende construir um condomínio fechado na cidade de Governador Celso Ramos, inaugurar um novo centro de desenvolvimento técnico no Sapiens Parque, em Florianópolis, e licenciar diversos produtos – roupas, acessórios, miniaturas e até elevadores.
Só tem um problema: a empresa em questão não é a Automobili Lamborghini S.p.A., sediada em Sant’Agata Bolognese. Ela é uma empresa mexicana chamada Lamborghini Latinoamérica e, apesar de ser mesmo a dona dos direitos sobre a marca na América Latina, não tem qualquer tipo de afiliação com Lamborghini de verdade, lá da Itália.
Ao contrário: a Lamborghini de verdade, que hoje pertence à Volkswagen e continua com sua sede em Sant’Agata Bolognese, na Itália, não apenas nega qualquer envolvimento com a Lamborghini Latinoamérica como também tenta, já há alguns anos, impedir que a empresa continue a usar seu nome de forma indiscriminada. Sem sucesso.
Mas como isso aconteceu? E quem está por trás disso? Respostas a seguir.
A Lamborghini hoje está em uma situação confortável. Sob a asa da Volkswagen e atuando em conjunto com a Audi, a Lamborghini caminha para ser uma das últimas a abandonar os motores grandalhões e naturalmente aspirados, e tem ao menos dois novos modelos previstos para chegar ainda nesse ano – sem falar nos projetos feitos sob encomenda, protótipos e versões especiais que são apresentados regularmente.
Mas nem sempre foi assim. À maneira de outras fabricantes icônicas já extintas, a Lamborghini fazia carros incríveis, inesquecíveis, mas não conseguia transformá-los em dinheiro. Portanto, antes de ser acolhida pelos alemães a Lamborghini trocou de mãos algumas vezes e quase foi à falência – e, no meio desse processo, abriu espaço para que um mexicano, Joan Fercí, criasse sua própria Lamborghini. Totalmente dentro da lei, diga-se.
De boas intenções…
Joan Fercí é a alcunha – bem sacada, por sinal – Jorge Antonio Fernández García, empresário mexicano que pode ser acusado de várias coisas, menos de não gostar de verdade da Lamborghini. Dono de um Diablo 1992 desde zero-quilômetro, ele era um fornecedor da Chrysler no México quando a Lamborghini pertencia à gigante de Detroit.
A Chrysler comprou a Lamborghini em 1987, interessada na expertise de seus engenheiros na criação de esportivos – há um dedo deles no V10 do Dodge Viper, até – e na possibilidade de criar um esportivo americano de alto nível. Foi na era Chrysler que a Lamborghini finalmente substituiu o Countach, que já era um ancião, pelo Diablo (e criou um dos pôsteres mais famosos do mundo no processo).
Mas a Chrysler nunca foi referência em finanças e percebeu que era melhor não de ter uma fabricante de superesportivos italiana entre suas despesas, vendendo a Lamborghini a um grupo de investidores na Indonésia em 1994.
Quatro anos depois, em 1998, a Volkswagen comprou a Lamborghini e garantiu seu futuro. Nesse meio tempo, Joan Fercí viu a oportunidade e a agarrou.
Na ânsia de tornar a Lamborghini uma empresa lucrativa e vendê-la mais caro depois, os investidores indonésios estavam abertos a qualquer coisa. Sabendo disso, Joan os procurou com a proposta de se tornar o importador oficial da Lamborghini no México. E os então proprietários da fabricante aceitaram.
Até aí, tudo normal – esse modelo de negócio é comum até hoje no segmento dos carros exóticos, com importadoras independentes tornando-se representantes oficiais de fabricantes no mundo todo. O detalhe estava no contrato.
Hecho en Mexico
Joan Fercí assinou um contrato com Robert Braner, antigo presidente da Lamborghini nos Estados Unidos, e Michael Kimberley, que era o CEO da Automobili Lamborghini S.p.A. na época. O contrato previa não apenas a importação do recém-lançado Diablo, mas sua montagem no México.
Durante uma entrevista concedida ao site Argentina Autoblog em 2006, o próprio Fercí contou que “não foi difícil chegar a um acordo”, insinuando que as pessoas que cuidavam da Lamborghini na época não estavam muito preocupadas com os detalhes do acordo desde que, no fim de tudo, a marca estivesse presente em outro país. “Eles me cederam os direitos de uso da marca na América Latina por 99 anos. Naquele período [em quatro anos], montei 23 exemplares do Diablo, dos quais 20 foram vendidos nos EUA e os três restantes foram para a Itália”, contou o empresário.
Novamente, apesar do prazo de validade absurdo, o contrato não parecia tão estranho. Mas havia uma cláusula que tornava tudo diferente – ele permitia que Joan Fercí realizasse suas próprias modificações no projeto para todo o mercado latino-americano. E foi exatamente isso que ele fez.
Em 1998, quando foi a compra da Lamborghini pela Volkswagen foi concretizada, os alemães estavam plenamente cientes de que, na América Latina, a marca Lamborghini pertencia a Joan Fercí, e também sabiam que ele, para efeito prático, tinha os direitos sobre o projeto do Diablo.
Sob a nova direção, a Lamborghini começou o desenvolvimento do sucessor do Diablo, o Murciélago, que foi apresentado em 2001. Era o primeiro projeto totalmente novo da Lamborghini em 11 anos, trazendo evolução em todos os sentidos – e, enfim, o potencial da fabricante foi plenamente explorado. Era provavelmente o melhor Lamborghini de todos os tempos. Uma batalha legal pelo Diablo e pelo uso da marca na América Latina não estava no topo da lista de prioridades.
Assim, amparado pela lei, a Lamborghini Latinoamérica seguiu trabalhando em cima do Diablo. O resultado foi um “novo” supercarro: o Lamborghini Coatl. Inicialmente chamado Eros, o carro pode ser definido tranquilamente como um Diablo com bodykit – e não dos melhores.
Com faróis afilados, entradas e saídas de ar dispostas de forma aleatória e uma versão de 635 cv do motor V12 original como sua única qualidade, ele teve apenas três unidades fabricadas e duas vendidas – uma delas ainda está com Joan Fercí, e aparece de vez em quando em eventos de clássicos.
Não satisfeito, o empresário logo bolou outro Diablo mutante: o Lamborghini Alar 777, que tinha esse nome por causa dos (supostos) 777 cv em seu V12. Ele também era um carro esquisito, com para-brisa e vidros laterais interligados e extremamente recuados (pareciam entradas no cabelo de um cara com calvície precoce), um bico na dianteira e faróis extremamente alongados.
Segundo Fercí contou ao Argentina Autoblog, foram feitos dois carros, mas só um deles apareceu em público – dizem que ele foi levado para Buenos Aires e de lá nunca mais saiu.
Ele não é a cara do Lamborghini Italdesign Calà?
Vaporware
Você já ouviu falar desses carros? É provável que não – ou que já soubesse que, evidentemente, a Lamborghini não os considera seus “filhos”. Mesmo que eles sejam feitos por uma empresa que, aos olhos da lei, é uma Lamborghini tão legítima quanto aquela que fica em Sant’Agata Bolognese.
A essa altura, é óbvio o porquê: esses carros são o que há de mais puro vaporware – produtos anunciados que podem até ganhar protótipos e aparecer em público, mas nunca chegam de fato ao mercado. Geralmente porque são inviáveis e bons demais para ser verdade… ou delirantes e não muito bons. E nem são de verdade.
Dificilmente esses carros estão à altura de carregar o nome Lamborghini, e têm muito mais cara de algo feito simplesmente porque Joan Fercí tem os meios e consegue lucrar alguma coisa com os direitos sobre a marca. Claro, existem fotos deles e Fercí garante que alguns foram exportados, mas há pouca evidência factual disso.
Pelo menos esses dois têm fotos. Já o projeto mais recente, outro carro baseado no Diablo, só ganhou projeções e sketches. Apresentado em 2016, o chamado Lamborghini L.A. Vision era mais parecido com um Lamborghini de verdade e já foi prometido para a Argentina (onde se enquadraria na lei dos fora-de-série), no Uruguai e no Paraguai.
Agora, veja bem: um Lamborghini fabricado por um mexicano no Paraguai. Algum palpite sobre por que ele nunca virou realidade?
Nenhuma das promessas foi cumprida nos últimos anos. E agora, Joan Fercí diz que vai fabricar um superesportivo elétrico em Santa Catarina. Sem querer apontar dedos e tirar conclusões precipitadas, arriscamos dizer com razoável confiança que esse carro nunca vai sair do papel. Mesmo que seja por influência da Lamborghini – a verdadeira, lá da Itália. Uma empresa que também já praticou alguns atos no mínimo questionáveis, mas nem de longe tão graves. (Estamos falando do recorde do Aventador em Nürburgring, caso você não tenha ligado os pontos).
Impasse
Juridicamente, o caso encontra-se em uma espécie de limbo. O Grupo Volkswagen, como mencionamos mais acima, tem ciência da existência da Lamborghini Latinoamérica e, agora que a marca encontra-se financeiramente estável, estuda formas de impedir Joan Fercí de continuar usando o nome Lamborghini da forma que quer na América Latina. Situação que só não é pior para a marca porque, na prática, faltam ao mexicano meios para produzir carros que possam, de alguma forma, ameaçar a Lamborghini no mercado latino-americano.
Não há muito o que fazer. Joan Fercí contou ao Argentina Autoblog que, pelo visto, o melhor que a Lamborghini pode fazer é tentar um acordo amigável com ele. Que não parece muito interessado – ao contrário: na ocasião da entrevista, ele garantiu que vai tentar aproveitar o máximo possível as décadas que faltam para o fim do contrato.
Da nossa parte, impossível não lamentar a escolha feita por Joan Fercí – nosso palpite é que ele agora interessou-se pelos incentivos fiscais que vêm sendo concedidos a empresas que se dizem comprometidas com o desenvolvimento de carros elétricos, e por isso acabou ressurgindo em um ambiente sedento por investimentos, caso do Brasil nesta pandemia.
Mas ele poderia aproveitar que é o detentor legal da marca Lamborghini na América Latina para, de fato, vender carros da Lamborghini. E ele até poderia, de forma totalmente legítima – e possivelmente muito lucrativa – vender carros modificados com bodykits prontos (os Novitec ou Liberty Walk, por exemplo) com sua própria marca. É exatamente por isso que toda a operação da Lamborghini Lationamerica é tão… suspeita. Por que não vender carros que as pessoas querem, em vez de vagar pela América Latina, de promessa em promessa?