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Mercado e Indústria

Novos protocolos do Latin NCAP: dor-de-cabeça para algumas marcas, orgulho para outras

Desde que o Latin NCAP introduziu seus novos critérios para avaliação de segurança veicular em 2020, se aproximando um pouco mais da metodologia do Euro NCAP, o balanço tem sido assustador. No ano passado, dos doze veículos avaliados, nove modelos tiraram nota zero – nada menos que 75% da amostragem. E destes zerados, cinco são vendidos aqui: Fiat Argo e Cronos (2 air bags), Renault Duster (2 air bags), Hyundai Tucson (2 air bags) e Kia Sportage (2 air bags). Vale observar que, dependendo da versão e do mercado, há a oferta de mais air bags.

Falando ainda do que é vendido por aqui, o Peugeot 208 (4 air bags) recebeu duas estrelas. O Yaris (2 air bags) recebeu apenas uma estrela, mas a versão testada trazia menos equipamentos de segurança passiva e ativa que a versão comercializada aqui no Brasil. E então, em 3 de dezembro, depois de quase dois anos, pela primeira vez um veículo conquistou cinco estrelas sob estes novos protocolos: o VW Taos (6 air bags). Até este momento, fevereiro de 2022, ele segue como o único cinco estrelas.

O que está acontecendo? O que mudou nestes critérios do Latin NCAP para termos resultados tão catastróficos? E de que forma o Taos conseguiu um resultado tão contrastante? E quais benefícios e confusões nascem deste nível de exigência europeia na avaliação de segurança veicular?

 

Os novos protocolos do Latin NCAP: o que mudou?

Em outubro de 2019, o Duster com dois air bags havia conquistado 4 das 5 estrelas, ainda sob os critérios antigos do Latin NCAP. Em agosto de 2021, sob os novos critérios? Nota zero. Que mudanças foram realizadas nos protocolos para haver um contraste tão grande no (basicamente) mesmo veículo?

O protocolo anterior consistia em duas avaliações separadas, com teto de cinco estrelas: Proteção para Ocupantes Adultos e para Ocupantes Infantis.

O novo protocolo passou a ser vigente desde dezembro de 2019 e as fabricantes foram notificadas do mesmo no início de 2017. O que mudou? Além de adicionar duas novas avaliações às já existentes – Proteção de Pedestres e Usuários Vulneráveis de Estradas, mais Tecnologias de Assistência de Direção –, o sistema passa a unificar a nota: agora, a avaliação final é apenas uma escala de cinco estrelas, que conjuga estas quatro avaliações.

Mais ainda: a régua é balizada pela nota inferior. Então se um veículo é excelente em todas as proteções contra impactos e atropelamentos, mas péssimo em Tecnologias de Assistência de Direção (ou o contrário), a nota dificilmente não será péssima. Isso vale também para a gama de equipamentos: se apenas a versão topo de linha possui tais tecnologias, a nota também será prejudicada. O equipamento precisa estar disponível nas versões de entrada. Com isso, fica muito mais difícil um veículo obter uma boa nota – quanto menos um cinco estrelas, como foi o caso do Taos.

As Tecnologias de Assistentes de Segurança englobam avaliações práticas dos lembretes de cintos dianteiros e traseiros, controle de estabilidade, o famoso teste do alce (foto acima), detecção de veículo em ponto cego, sistema de manutenção em faixa, detecção de borda de estrada, controle de velocidade de cruzeiro e frenagem autônoma emergencial.

De acordo com o Latin NCAP, para obter cinco estrelas, o veículo precisa oferecer simultaneamente, ao menos, pontuação de 75% na Proteção de Ocupantes Adultos; pelo menos, 80% em Proteção de Ocupantes Infantis; pelo menos, 50% em Proteção de Pedestres e VRU e, pelo menos, 75% em Tecnologias de Assistentes de Segurança.

O objetivo do órgão é se aproximar de algumas das normas adotadas pelo Euro NCAP desde 2014 e pressionar as fabricantes que não oferecem boa proteção para atropelamentos ou que oferecem de forma limitada os recursos de segurança ativa.

 

Como o Taos conseguiu cinco estrelas no Latin NCAP

O Taos figura, neste momento, como um case isolado de cinco estrelas neste novo protocolo – e tudo indica que ele não terá muita companhia no pódio em 2022. O seu resultado é explicado por duas frentes: primeiro, a composição dos equipamentos de segurança ativa disponíveis para a versão de entrada Comfortline. Segundo e principal, a sofisticação da plataforma MQB em termos estruturais.

O Taos atingiu notas bastante elevadas: 90,23% em Proteção de Ocupantes Adultos, 89,90% em Proteção de Ocupantes Infantis, 60,61% em Proteção de Pedestres e Usuários Vulneráveis das Estradas e 85,04% em Sistemas de Assistência à Segurança. Vale observar que o veículo possui, de série, seis air bags, desde a versão Comfortline.

Intrusão virtualmente nula no teste de impacto lateral e baixíssima deformação na célula de sobrevivência no impacto frontal: isso, combinado a uma desaceleração progressiva nos dummies, consequência de uma boa dissipação de energia pelo monobloco, foram fundamentais para a boa nota

No sistema de proteção a pedestres, o Taos atende a norma UN127 (que define o nível de ferimentos aceitáveis para o teste de atropelamento), traz controle de velocidade de cruzeiro, controle de estabilidade e sistema de detecção de ponto cego. Como opcionais ele traz o sistema de frenagem emergencial autônomo com detecção de pedestres e a versão adaptativa do controle de velocidade de cruzeiro, todos disponíveis em, ao menos, 50% do volume de produção, atendendo à exigência atual do Latin NCAP para serem considerados na nota.

Mas é a sua estrutura que efetivamente selou as cinco estrelas. A plataforma MQB tem um histórico de excelência nas avaliações de crash test e já havia conquistado cinco estrelas no Polo, Virtus e T-Cross nas proteções para ocupantes adultos e infantis. A MQB nasceu em 2012 na aplicação do Audi A3 e foi uma das primeiras plataformas a trazer uma redução de massa tão agressiva (da ordem de 100 kg na virada de geração do Golf e do A3) pelo uso em alta quantidade de aços de alta e ultra alta resistência, combinada a chapas compostas com espessura variável e avanços nos processos de solda a laser e aplicação de adesivo estrutural.

Longarina do T-Cross, plataforma MQB. Note a complexidade metalúrgica apenas deste componente: diferentes ligas com diferentes propósitos de absorção e desaceleração de impactos. Este tipo de arranjo está presente em toda a linha de força, incluindo as estruturas de absorção laterais

Em termos de absorção de impactos, a MQB explorou bem a composição metalúrgica com sanduíches de diferentes ligas nas conexões de travessas e longarinas, dissipando as forças e tensões. Nisso, também foi fundamental os processos de simulações em Método dos Elementos Finitos, empregados de forma bastante avançada no desenvolvimento dos veículos com essa plataforma. Essa seria uma plataforma excessivamente cara se empregada para apenas uma família de veículos: sua grande sacada foi a diluição de custos com uma aplicação mundial que vai do Polo ao Passat, com algumas variações dimensionais e técnicas nas derivações A0, A1 e A2.

Com isso, mesmo SUVs de desenvolvimento regional, se beneficiaram de uma plataforma world class. No vídeo do crash test do T-Cross, filmado no Laboratório de Segurança Veicular da VW, é possível entender melhor como a estrutura do veículo trabalha para dissipar as forças e proteger os seus ocupantes. No caso do Taos, que utiliza uma versão mais sofisticada da MQB, a A1, os benefícios são ainda maiores.

 

Latin NCAP: alguma confusão evitável no ar

Segurança automotiva é como capacete: parece algo inútil, caro e desconfortável até a hora em que a sua vida é salva pelo dispositivo. As boas intenções do órgão e a sua importância estão claras como água. Contudo, é preciso refletirmos sobre algumas das distorções e consequências não-intencionais que esta mudança do Latin NCAP causa em alguns casos. E que poderia ser evitada.

Os novos critérios tornam impossível uma avaliação excepcional de um veículo do segmento de entrada ou intermediário, por mais seguro estruturalmente que ele seja para os ocupantes e para terceiros. Estes veículos terão uma nota necessariamente medíocre por não possuírem recursos avançados de segurança ativa (como vocês viram, controle de estabilidade é apenas o básico) e isso deve piorar no futuro, pois o órgão já declarou que irá aumentar o nível de exigência destes equipamentos com o passar dos anos. Daqui a algum tempo, a oferta de equipamentos avançados como opcionais, como a frenagem emergencial autônoma no caso do Taos Comfortline, pode trazer uma punição mais severa.

Nessa toada, se as fabricantes destes veículos de entrada ou intermediários, em busca de uma avaliação excelente, nivelarem seus equipamentos de segurança ativa por cima (um exemplo acontecerá com o próprio Toyota Yaris, que incorporará as tecnologias do pacote Toyota Safety Sense para toda a América Latina), os carros de entrada zero km serão excludentes para parte significativa dos compradores. Estes terão de ir para o mercado de usados ou para as motocicletas e, neste sentido, temos um efeito contrário à intenção do Latin NCAP: acontecerá o estímulo ao envelhecimento da frota pela falta de poder aquisitivo de quem busca o segmento de entrada.

Menos segurança para este segmento da população, não mais segurança. E de fato, este movimento já está acontecendo, estimulado por outra coisa: a falta de suprimentos. As marcas estão favorecendo pacotes mais completos e com maior margem e isso, combinado à inflação e desvalorização cambial, deixou os zero km proibitivos.

Outra questão, mais técnica, é que as estrelas deixam de ser autossuficientes em sua função explanatória.

No critério anterior, as estrelas ilustravam de forma cartesiana: excelente na proteção de ocupantes adultos, ruim para ocupantes infantis etc. Agora, elas necessitam de um parágrafo anexo ou de uma série de ícones (como vimos no Duster, acima), explicando as razões de uma nota baixa ou média, já que ela conjuga quatro avaliações em uma – e o veículo pode ser excelente em três das quatro avaliações, bastando uma mediana para a nota final ser mediana. Então, sob o critério metodológico, temos ruído na função das estrelas, que precisam vir acompanhadas de explanação por extenso.

O caso do Duster, que foi de quatro para zero estrelas, traz ainda uma outra reflexão filosófica sobre o Latin NCAP. Se da noite para o dia um carro que era avaliado de forma muito boa passa a ser uma calamidade, ou a avaliação anterior era inútil ou a nova está incorrendo em algumas distorções circunstanciais. E nestes casos, fica necessária toda uma investigação da imprensa na avaliação do órgão e vários parágrafos explicando as estrelas, pois elas, sozinhas, não se sustentam de forma autoexplicativa. Isso, claro, falando do espectro baixo da escala. Um cinco estrelas é um cinco estrelas.

Falando nelas, ajudaria a presença de uma escala de estrelas para segurança passiva dos ocupantes e de terceiros, e uma segunda escala somente para tecnologias de segurança ativa? Talvez. Isso daria uma compreensão mais precisa das notas de acordo com o segmento de atuação do produto e também em relação ao mercado em que ele atua – o caso do Yaris é ilustrativo, pois a Toyota do Brasil foi prejudicada por uma configuração que sequer é vendida aqui.

O impacto positivo do Latin NCAP em evoluir tecnicamente as frotas é inegável, mas a informação pode chegar ao consumidor de forma mais clara e precisa. E claro, é preciso cuidar para isso não gerar um catálogo que impeça a população mais simples de ter acesso a veículos zero quilômetro e suas benesses técnicas e de segurança.