Na década de 1960, várias fabricantes europeias menores decidiram criar esportivos com motores norte-americanos. Era uma bela proposta: juntar o elegante design europeu com a confiabilidade, a robustez e a potência dos V8 made in USA – que, ainda por cima, eram numerosos e acessíveis. A eficácia desta fórmula pode ser constatada até hoje: basta dar um giro rápido pela Internet para encontrar dezenas e dezenas de projetos que consistem em instalar um V8 americano (provavelmente um LS da General Motors) em… bem, qualquer outro carro, de qualquer outro país.
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Foi assim que surgiram alguns esportivos lendários, como o De Tomaso Pantera com seu V8 Ford, o Jensen Interceptor com mecânica Chrysler, ou o Iso Grifo que oferecia motores Ford e Chevrolet. Mas esta não era a única forma de ter american horsepower e design europeu no mesmo carro. Às vezes, as carrozzerie italianas também faziam das suas, e transformavam os esportivos americanos em verdadeiros gran turismo, e com resultados desconcertantemente bonitos.
Eram projetos ainda mais especiais – em vez de carros de produção reduzida para um público de alto poder aquisitivo (caso do Jensen Interceptor e do Iso Grifo), estes muscle cars disfarçados eram, na maioria das vezes, projetos únicos feitos sob encomenda para clientes que podiam pagar pela exclusividade. Pela quantia certa, estes carros acabavam se tornando projetos de estimação de seus criadores, que os utilizavam como vitrines para seu trabalho, sem concessões. E o resultado era (quase) sempre incrível – e em nada lembrava os carros que lhes deram origem, utilizando novos materiais e técnicas de construção.
O Corvette de metal da Pininfarina
Ao longo de sua história, um aspecto do Chevrolet Corvette nunca mudou: a carroceria de fibra de vidro. Mais leve e barata, ela se tornou a marca do ‘Vette – mesmo no C8, com a adoção de componentes de fibra de carbono e alumínio na estrutura. É um anacronismo necessário, que reduz o preço e mantém a tradição ao mesmo tempo.
Em 1963, para marcar o lançamento do Corvette de segunda geração (C2), a Chevrolet decidiu criar um one-off para ser exibido no Salão de Paris. O carro foi concebido pelo projetista Bill Mitchell, da GM, e Battista Farina, fundador da casa italiana Pininfarina – famosa por sua longa colaboração com a Ferrari. O que nos leva a crer que, se fosse um Ford, o Corvette Rondine Coupe jamais teria existido…
Embora utilizasse o chassi do Corvette C2, Rondine Coupe ganhou uma carroceria no bom e velho aço, esculpida com formas definidas pelo designer Tom Tjaarda, hoje conhecido pelo De Tomaso Pantera e pelo Fiat 124 Spider. Tinha três volumes bem definidos, com capô longo, traseira baixa e o vigia traseiro com inclinação negativa. A traseira longa era comparada à cauda de uma andorinha – rondine em italiano.
Debaixo do capô ficava o mesmo motor V8 327 normalmente usado pelo Corvette, acoplado a uma caixa manual de quatro marchas – e que tinha alguns quilos a mais para puxar, graças à carroceria de metal. Testes da época diziam que o peso fazia pouca diferença na hora de conduzir, e que na verdade a carroceria de metal passava uma sensação de maior solidez, não rangendo tanto quanto a carroceria de fibra original do Corvette. Curiosamente, o interior não sofreu modificações.
O carro teve duas versões diferentes. A primeira e original tinha o vigia traseiro dramaticamente inclinado (lembrando o Citroën Ami ou o Ford Anglia, por exemplo), mas no final de seu desenvolvimento ganhou uma silhueta mais tradicional, com um vidro curvo que envolvia o deque do porta-malas. Ainda assim, embora tenha sido bem recebido na época, o Rondine não se tornou exatamente um hit: o Corvette C2 era bem mais harmônico e esportivo.
Depois do Salão de Paris de 1963 a Chevrolet cedeu o carro à Pininfarina, que o manteve guardado até 2008, quando decidiu vendê-lo. Totalmente restaurado, o carro foi leiloado pela Barrett-Jackson naquele ano. E foi bem mais valorizado que em sua época: alguém o arrematou por US$ 1,76 milhão. Um golpe de sorte, acreditamos – não era raro, naquela época, que conceitos fossem sucateados ou destruídos após servir seu propósito.
O Mustang da Bertone
Case in point: diferentemente do que aconteceu com o Corvette Rondine, o Ford Mustang com carroceria Bertone desapareceu no tempo.
Ele foi mostrado ao mundo em 1965, dois anos depois, no Salão de Detroit, e deve sua existência a uma antiga revista norte-americana chamada Automobile Quarterly, que deixou de ser publicada em 2012. Na verdade foi o fundador da revista, L. Scott Bailey, quem encomendou o carro à Ford – que pediu a ajuda do estúdio Bertone para executar o projeto.
Segundo consta, um carro doador foi cedido pela própria Ford – que talvez estivesse até ansiosa para ver como seu recém-lançado cupê esportivo ficaria. Novamente, o chassi foi aproveitado integralmente, bem como a mecânica – um V8 289 com carburador de corpo quádruplo acoplado a uma caixa manual de quatro marchas. Cedido pela Ford, o carro foi totalmente transformado, com uma carroceria mais baixa e alongada, faróis ocultos atrás da grade e um vigia traseiro grande e curvo, que tornava o habitáculo bem mais arejado.
A linha de cintura baixa e as divisões das janelas traseiras, porém, deixavam sua silhueta meio desajeitada. Já o interior ganhou novo design, com um painel mais minimalista e retilíneo típico dos carros italianos.
O visual um pouco inconsistente, porém, é perdoado quando nos damos conta de que seu designer tinha apenas 27 anos de idade e estava realizando um dos seus primeiros grandes trabalhos. Seu nome era Giorgetto Giugiaro – e, na década seguinte, ele teria seu breakthrough ao criar as formas do Volkswagen Golf de primeira geração, lançado em 1974.
E então… o carro desapareceu. Depois de causar comoção moderada em Detroit e aparecer em algumas revistas, o Mustang Bertone foi anunciado por US$ 10.000 (o equivalente a pouco mais de US$ 80.000 em 2020) – um terço do custo do projeto. A partir daí, sua história é envolta em névoa. Em 2014, quando a Bertone foi liquidada e seu acervo vendido, o Mustang Bertone não estava no meio do patrimônio.
O Challenger da Frua
Este é possivelmente o mais belo dos muscle cars “europeizados” – o Dodge Challenger da Frua. Criado em 1970, ele foi encomendado pelo Sr. Alfred Schäfer, que na época era presidente do Union Bank of Switzerland (UBS). Ele também era muito amigo de Walter Häfner, dono da empresa que importava os Chrysler de forma oficial para a Suíça. É o que dizem: quem tem bons contatos tem tudo.
De forma inusitada, Schäfer optou por uma carrozzeria mais desconhecida – a Frua não tem a mesma pompa de Bertone, Zagato, Pininfarina e companhia, mas o trabalho em cima do Challenger foi o mais coeso.
Alfred Schäfer queria exclusividade e, para obtê-la, procurou o presidente e fundador da Carrozzeria Frua, Pietro Frua, que ficou mais conhecido por sua associação aos Maserati (como o curioso Mistral, com sua dianteira à la Porsche 911). Para o Challenger, Frua adotou uma linguagem visual parecida com a dos Lamborghini da época, como o Espada: linhas mais retas, capô longo uma linha contínua do topo do para-brisa à extremidade traseira, com uma inclinação bem suave. Janelas grandes garantiam uma cabine iluminada, e a tampa traseira de hatchback cobria um porta-malas cavernoso. A cabine não mudou quase nada: só novos mostradores e tapeçaria refeita. O estilo sóbrio do interior do Challenger combina bastante com o exterior projetado por Frua.
A mecânica era igual à do Challenger – no caso, da versão com motor de 383 pol³, dupla carburação e 335 cv, ligado à transmissão TorqueFlite de três marchas da Chrysler. Com espaço interno mais generoso, espaço para as malas e câmbio automático, o Challenger Frua era um grand tourer por excelência, capaz de passar dos 200 km/h.
Estranhamente, Alfred Schäfer não ficou tanto tempo assim com o carro: ele vendeu o Challenger Frua em 1977 e, desde então, o cupê passou por alguns donos diferentes – sempre mantido em condições originais.
O profético Dodge Viper da Zagato
Este pode ser bem mais novo, mas merece seu lugar aqui – tanto pelo carro em si quanto pelo contexto: o Alfa Romeo TZ3 Zagato. Que, na verdade, é um Dodge Viper com roupa de Alfa Romeo e design Zagato feito anos antes da fusão entre Fiat e Chrysler. Um FCA anos antes da FCA, se preferir.
Foi em 2010; quatro anos antes da fusão ítalo-americana, que a Zagato decidiu fazer uma versão de rua do seu Alfa Romeo TZ3 Corsa, um carro de corridas feito sobre chassi tubular e carroceria própria, equipado com um motor V8 de 4,2 litros do Alfa Romeo 8C.
Na época a Fiat já havia abocanhado uma fatia da Chrysler, e por isso, em vez de usar uma base cara como um Maserati GranTurismo, a Zagato pegou nove exemplares do Dodge Viper ACR, removeu todos os painéis da carroceria original e substituiu pela roupa italiana – chassi, mecânica e interior permaneceram inalterados, com exceção de detalhes de acabamento dos bancos e painel.
Nascia o Alfa Romeo TZ3 Stradale – um carro… diferente. As proporções eram definitivamente do Viper, mas as formas tinham inspiração nos Alfa Romeo Giulia TZ da década de 1960, também feitos pela Zagato. Foram feitos nove exemplares em 2011, de forma artesanal, o que significa que o TZ3 Stradale é não apenas um dos Alfa Romeo mais raros do planeta, mas também um dos Dodge Viper mais raros.