Ao longo da história, houve alguns superesportivos que brincaram com a ideia de criar um “Fórmula 1 para as ruas”. A Mercedes-AMG está muito perto disto com o One, que está prometido para 2021 e usa uma versão amansada do V6 biturbo que move os monopostos de Fórmula 1. Ferrari F50 e Enzo, por sua vez, também têm certos elementos dos carros de F1 em construção e mecânica.
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Pois houve outro supercarro, bem mais obscuro, que tentou esta proeza na Terra do Sol Nascente. Agora, se você quiser se orientar apenas pelo nome do carro, dificilmente vai sacar que se trata de uma máquina japonesa: Jiotto Caspita – sim, exatamente como o “Caspita!” que os italianos vociferam quando estão furiosos ou surpresos. Curiosidade: “caspita” é um eufemismo para cazzo, que significa “c***lho” em italiano. E a ideia era mesmo causar admiração e surpresa.
O Jiotto Caspita foi criado pela Dome, empresa japonesa fundada na década de 1970 por um mecânico chamado Minoru Hayashi, com a proposta de construir carros de competição por encomenda. Seu projeto mais famoso é possivelmente o Dome Zero, de 1978, um esportivo com perfil de cunha e motor seis-em-linha Nissan que muitos já devem ter visto no Gran Turismo 4 (e também nas páginas do FlatOut).
Ao longo da década de 1980, a Dome dedicou-se mais aos monopostos de Fórmula 3 e aos protótipos do Grupo C – o Toyota 88C, que competiu nas temporadas de 1988 e 1989 do WSC (World Sports Car Championship), foi feito pela Dome.
Não por acaso, foi nesta época que a Dome teve a ideia de produzir um carro de rua capaz de superar todos os outros, usando os carros do Grupo C como inspiração. Parece um plano ambicioso demais vindo de uma empresa tão pequena e conhecida apenas pelos entusiastas mais hardcore. Mas estamos falando do Japão do fim da década de 1980, quando a economia estava em um período de crescimento vertiginoso e as fabricantes de carro colocavam em prática toda sorte de projetos mirabolantes. Além disso, a Dome havia encontrado um parceiro ideal, ainda que improvável. Minoru Hayashi, que ainda era presidente da Dome, fechou um acordo com Yoshitaka Tsukamoto, que era o presidente da Wacoal Corporation – uma empresa cujos principais produtos são lingeries e outros artigos de vestuário feminino.
Os dois homens decidiram criar uma nova empresa, a Jiotto Incorporated – da qual 60% pertenciam à Wacoal, e os outros 40% à Dome.
Apesar da natureza meio aleatória do projeto, não faltou dedicação por parte da Dome, que na prática ficou encarregada do desenvolvimento do superesportivo. O carro tinha design inspirado pelos protótipos do Grupo C – como o Toyota TS010, que e foi aperfeiçoado com testes em um túnel de vento (usando um modelo em escala 1:5) para garantir a melhor aerodinâmica possível.
Foram feitos mais de 200 esboços do carro, que passaram por um processo de triagem até que se chegasse a três propostas favoritas – e uma delas, que trazia uma asa traseira integrada à carroceria e enormes entradas de ar nas laterais, foi a escolhida para o primeiro protótipo, apresentado no Salão de Tóquio de 1989.
O protótipo batizado Jiotto Caspita, lembrava mesmo um carro de competição do Grupo C convertido para uso nas ruas. Tinha formas limpase arredondadas, esculpidas com elegância e sem exageros, com proporções muito harmônicas. Até certo ponto ele lembrava alguns outros superesportivos que vieram depois – em especial o BMW Nazca C2, de 1991, principalmente pelo formato do cockpit e pelo contorno do capô.
O Jiotto Caspita era construído com um monocoque de fibra de carbono e alumínio fornecido pela Mitsubishi Rayaon, hoje Mitsubishi Chemical Corporation. Os painéis da carroceria eram formados por uma espécie de “sanduíche”, com chapas de alumínio revestidas com fibra de carbono – uma forma de reduzir custos sem prejudicar a rigidez e sem aumentar o peso. O resultado era um carro que pesava 1.100 kg em ordem de marcha – relativamente baixo até mesmo para os padrões atuais. Para se ter ideia, o McLaren F1 tinha seus 1.138 kg.
Atrás dos bancos ficava um motor longitudinal bastante peculuar: o flat-12 desenvolvido pela italiana Motori Moderni para a fracassada equipe da Subaru na Fórmula 1 na virada dos anos 1980, com 3,5 litros e cerca de 500 cv. Na concepção da Dome, por mais que fosse fraco e pouco confiável para a Fórmula 1, o motor tinha potencial para uso nas ruas – só precisava de alguns ajustes.
Assim, o flat-12 “Subaru” foi colocado no cofre do Jiotto Caspita, acoplado a uma caixa manual de seis marchas da Wiessman. Seus números eram adequados para a época – 450 cv e 36,9 kgfm, com destaque para o pico de potência nas 10.000 rpm.
De acordo com a Dome, o Jiotto Caspita era capaz de ir de zero a 100 km/h em 4,7 segundos, com máxima de 320 km/h. Eram números ambiciosos – e, não por acaso, exatamente os mesmos números divulgados pela Ferrari para a mítica F40. Olhand os dois lado a lado, Ferrari e Jiotto, o supercarro japonês parecia pelo menos dez anos à frente – e talvez a Dome tenha achado que isto bastaria.
Fora o motor, o Jiotto Caspita ainda trazia alguns recursos que só se tornariam comuns em supercarros anos mais tarde – como a suspensão, que usava um arranjo de braços triangulares nas quatro rodas e um sistema para elevar ou reduzir a altura do carro em 6 cm; e a asa traseira, que tinha ajuste eletrônico para priorizar downforce ou baixo arrasto.
O Jiotto Caspita causou uma boa impressão no Salão de Tóquio – e parecia que o próximo passo era concluir mais alguns testes e colocá-lo em produção. Só que não foi bem assim: o fracasso da Subaru na Fórmula 1 (como contamos nesta matéria) fez com que o desenvolvimento do motor flat-12 fosse cancelado. Assim, a Dome ficou sem um fornecedor para a mecânica de seu supercarro.
Com design bem resolvido e um investidor grande, o Jiotto Caspita poderia, ao menos, ter gerado uma série limitada de carros de rua. E seus criadores não estavam mesmo dispostos a desistir – depois de um período de silêncio, em 1992 foi apresentado o Jiotto Caspita Mk2.
Era um protótipo levemente reestilizado, com novos faróis e lanternas, mas a mesma silhueta básica. A maior novidade era o motor: um V10 Judd de Fórmula 1, novamente acoplado ao câmbio Wiessman de seis marchas. Na época, a FIA havia acabado de atualizar as regras do WSC, na prática permitindo que antigos motores de Fórmula 1 fossem comprados por equipes para uso em protótipos – uma oportunidade que a Judd aproveitou para fornecer seus motores V10 para diversas empresas. A Dome foi uma delas.
O V10 de 72° com 3,5 litros de deslocamento entregava 585 cv a 10.750 rpm e 36,9 kgfm a 10.500 rpm – sim, ele gostava de girar alto, e soava de acordo. Assim, mesmo com o peso mais elevado – 1.280 kg – o Jiotto Caspita tinha potencial para fazer o zero a 100 km/h na casa dos três segundos baixos, enquanto a velocidade máxima saltava para 345 km/h.
É da versão Mk2 um dos poucos registros do Jiotto Caspita em movimento. E, por sorte, trata-se de um belo registro. O carro foi levado para a famosa pista de testes de Yatabe, no Japão, para um clipe promocional – e que clipe: apenas o carro acelerando até o limite com o ronco do V10 a mais de 10.000 rpm servindo de trilha sonora.
É claro que, como sabemos, o Jiotto Caspita não foi para a frente – talvez por um problema de timing. Exatamente em 1992 aconteceu o crash do mercado imobiliário japonês, causando um efeito dominó que derrubou toda a economia do Japão. Isto incluía o setor automobilístico: conter custos tornou-se imperativo, e projetos de alto investimento e baixo retorno foram cancelados.
O Jiotto Caspita foi um deles. E depois, a Dome voltou a concentrar-se em seus carros de competição – principalmente protótipos para os campeonatos japoneses, como o All Japan Sports Prototype Championship.
Ao menos os protótipos foram guardados, e não destruídos. O Mk1 fica até hoje no Museu do Automóvel japonês, como um monumento à história da indústria automobilística do País. Já o segundo fica no acervo da Dome no Japão, e de tempos em tempos é exibido em algum evento.
Dica do leitor Carlos Eduardo