Tenho certeza de que se eu disser “a fábrica de Stuttgart” você irá pensar na Porsche. A imagem que virá à sua memória certamente será a de um 911. Acontece que esta metonímia é um tanto imprecisa, porque além da Porsche a Mercedes também é uma “fábrica de Stuttgart” — as duas estão separadas por pouco menos de 10 km; a Mercedes mais próxima do centro da cidade, e a Porsche no distrito de Zuffenhausen, na zona norte da cidade.
A relação entre as duas marcas, contudo, vai muito além da cidade — e justamente por causa da cidade. A história começa com Ferdinand Porsche, o patriarca. Em 1906 ele foi convidado pela Austro-Daimler — a divisão austro-húngara da Daimler (que ainda não era ligada à Benz) — para ser o projetista chefe da empresa. Ali ele criou seus primeiros carros de competição, entre eles o lendário 27/80, mais conhecido como “Prince Henry”, e o Maja, que foi batizado em homenagem à filha mais nova de Emil Jellinek, Andrée Maja Jellinek. Sim, a irmãzinha da Mercedes.
Dez anos depois, ele foi promovido a diretor geral e iniciou um período de grande sucesso da Austro-Daimler nas pistas. Em 1922, por exemplo, seus carros venceram 43 das 53 corridas que disputaram. Apesar do sucesso, a Austro-Daimler tinha uma visão diferente sobre o futuro da empresa e, insatisfeito, Porsche se demitiu em 1923.
Ironicamente, naquele mesmo ano ele foi contratado pela Daimler Motoren Gesellschaft (DMG), a matriz da Austro-Daimler, onde seria diretor técnico no QG da fabricante em… Stuttgart. E foi assim que Porsche acabou na Alemanha. Ali ele novamente projetou diversos carros de rua e de pista, entre eles o Mercedes-Benz SSK. Note que o SSK já tinha o “Benz” agregado ao nome. Isso, porque ele foi desenvolvido entre 1926 e 1928, após a fusão da DMG com a Benz.
No ano seguinte, contudo, desanimado com a rejeição de sua proposta para um carro leve e compacto por parte do conselho da Mercedes-Benz, Porsche deixou a empresa e foi trabalhar na Steyr em 1929 — sim, o ano da Grande Depressão. Graças a ela, Porsche acabou sem ter o que fazer na Steyr e, dois anos mais tarde, abriu a Dr. Ing. h.c. F. Porsche GmbH, Konstruktionen und Beratungen für Motoren und Fahrzeugbau — algo como “Doutor Engenheiro Honoris Causa F. Porsche Ltda. Construção e Consultoria para Motores e Veículos”. O resto é história.
A Daimler-Benz, por outro lado, continuou sem um modelo compacto e leve e barato até 1997, quando achou uma boa ideia fazer um hatchback de dois andares. Mas isso também é outra história.
O que importa aqui, é que as duas fabricantes têm um longo histórico de colaboração. A mais famosa delas é a fabricação do Mercedes-Benz 500E pela Porsche, uma história que já contamos anteriormente e que é bem conhecida pelos FlatOuters. Em resumo, quando a Mercedes decidiu fazer o 500E para pegar um pouco do dinheiro que a AMG estava recolhendo em baldes com o “Hammer”, ela não tinha espaço em suas linhas de produção para colocar um V8 na Classe E W124, então terceirizou o serviço com uma fabricante que já havia trabalhado em parceria com a Mercedes e que tinha experiência e qualidade para fazer isso: a Porsche. Além disso, Zuffenhausen fica só a 9,5 km da sede da Mercedes, lembra?
Agora… você já se perguntou por que cazzo a Porsche foi escolhida e não a Magna-Steyr, que fazia os Classe G?
Bem… a resposta passa por esse carro aí de cima. Ele parece um W124 cupê (um C124, portanto), mas olhe para as rodas e ouse dizer que está tudo ok com ele…
Pois este Mercedes 230CE é a mula de testes para o motor V8 de 3,6 litros que a Porsche usaria no 989. Sim, Porsche 989, o avô do Panamera.
Lembra daquele Porsche que era um Seat, virou um Jaguar e acabou sendo um Daewoo? Então… ele era uma das propostas de sedã V8 da Porsche — ou seja: o V8 de 3,6 litros que a Porsche estava desenvolvendo, talvez fosse acabar no cofre daquele Porsche. Isso significa que ele seria um Porsche que foi um Jaguar, que nasceu como Seat e teve um motor V8 testado num Mercedes. Mais complicado que isso só a árvore genealógica das monarquias europeias e aquele monte de relações promíscuas quase incestuosas.
O Porsche que era Seat, virou Jaguar, foi Bugatti e acabou sendo Daewoo
Como já contamos anteriormente, a Porsche começou a desenvolver o projeto do que seria o Panamera na segunda metade dos anos 1980, sob o código de projeto 989. Na época, o Porsche 928 teve um período de grande sucesso que levou a marca a considerar um modelo maior e mais versátil que ele — algo que tivesse quatro portas, mas que tivesse tanto apelo quanto o 928. O encarregado pelo projeto foi o então engenheiro da Porsche Ulrich Bez, que mais tarde seria o CEO da Aston Martin responsável pelo atual posicionamento da marca.
As instruções sobre o 989 eram claras: o carro deveria ser luxuoso e confortável, mas deveria ter uma natureza esportiva superior à dos modelos da Mercedes-Benz e BMW. Para isso, Bez desenvolveu uma plataforma de motor dianteiro e tração traseira com 2.826 mm de entre-eixos, que usaria um novo V8 de 80 graus com cerca de 300 cv. O protótipo tinha muita semelhança com o que veríamos mais tarde nos 993 e 996 — especificamente os faróis e lanternas, respectivamente.
Agora… note que a Porsche já tinha o 928 com um motor V8. O problema de usá-lo como base de testes para esse novo V8 de 80 graus era justamente o ângulo entre as bancadas de cilindros. Um motor de 80 graus é mais alto que um motor de 90 graus — e o V8 de 90 graus já estava no limite do 928. Além disso, o 928 tinha apenas 2.500 mm de entre-eixos.
O jeito foi usar outro carro. Qual? A Audi tinha o V8 ou 5000, mas a plataforma não tinha tração traseira como prevista para o 989. E naquela segunda metade dos anos 1980, a Porsche havia sido encarregada pela Mercedes de adaptar a plataforma do C124 para a nova geração da Classe SL, a R129 — sim, eles compartilham a plataforma, mas isso você já sabia porque contamos essa história na matéria abaixo.
Parte do processo de adaptação da plataforma do C124 para o novo SL era modificá-lo para que o V8 M119 da Classe S pudesse ser instalado no roadster. Então se havia algo que a Porsche sabia fazer, esse algo era colocar um V8 no C124. Além disso, ele tinha um cofre mais espaçoso e um entre-eixos mais longo (2.710 mm) que o 928. Se você tem a faca e o queijo na mão, porque não comer um pedaço?
E foi assim que o Mercedes 230CE se tornou a mula de testes do motor V8 do Porsche 989. Uma prova de que a mula não se destinava apenas ao desenvolvimento do motor está nos detalhes que a Porsche modificou no cupê da marca cliente/vizinha.
O mais evidente deles são as rodas do Porsche 928, de 16 polegadas. Depois, por dentro, você encontra os bancos do 928, o volante do 928 (o que indica o uso da coluna/caixa de direção do 928), uma transmissão manual de Porsche e um freio de mão no console central em vez do freio de estacionamento acionado pelo quarto pedal, como é comum nos Mercedes.
Depois do desenvolvimento do SL R129 pela Porsche — o que levou à criação desta mula do 989 baseada no C124 —, a Mercedes contratou a Porsche para fabricar seu 500E justamente por sua experiência no processo de “swap” de motor V8 para a plataforma 124. O resto é mais uma história.
Já o C124 230E “Porsche”, foi usado até 1991, quando Ulrich Bez deixou a Porsche. Na mesma época, as vendas do 928 começaram a decair, o faturamento da Porsche começou a cair entre 1989 e 1991 e o 989 se tornou um projeto de risco. Em janeiro de 1992 ele foi cancelado e todos os protótipos — do 989 ao 932, passando pelo C230E V8, foram guardados no depósito da Porsche, onde permanecem até hoje.
O sedã da Porsche precisou esperar outros 17 anos para chegar às ruas. Mas esta história você viu ser escrita, não?
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